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Polaroids (#1 - #6)

 #1 Margaridas em enócoa sobre a mesa de café

Ali, do outro lado da rua, um mundaréu de gente se apressava na hora da saída do trabalho. Se a situação não fosse complicada o bastante, chovia. Não uma chuva qualquer: uma chuva de meados de verão, um torrencial acompanhado de raios e trovões desses que a gente se encolhe na hora que vê o clarão. Com os sapatos molhados, ela esperava debaixo do toldo da loja. Sem guarda-chuva? Não, não. Ela possuía um na bolsa tiracolo. Mas, esperta que era, sabia que nada daria conta naquele momento. Só restava ficar parada, junto com mais alguns, vendo os carros passarem nos pavimentos esburacados jogando água nos corajosos que possuíam hora marcada para chegar. Ela olhava o telefone. Seu rosto, no lusco-fusco da tempestade, ganhava tons amarelados, azulados e acinzentados. Ela parecia sorrir, às vezes. Talvez fosse uma boa conversa. Ou alguma foto engraçada. Vez e outra, olhava para trás, observando a vitrine da loja. Havia muitas cores ali dentro. E muitos aromas. Ela sabia disso, mas estava com vergonha de entrar. O que iriam pensar se comprasse algo para si mesma? Geralmente a gente só ganha essas coisas. A chuva começava a diminuir e alguns companheiros de toldo se arriscavam a correr até a entrada do metrô mais próxima. Ela estava tentada a seguir o mesmo rumo. Deu o primeiro passo para fora da cobertura. Deu o segundo. Chegou até à esquina. Pensou melhor. Quer saber? Que se dane. Voltou para a loja. Escolheu suas margaridas. Carregou consigo o embrulho como o presente mais precioso que já houvera ganhado. Dentro do metrô, alguns olhares de cobiça. Sortuda essa moça, ganhar flores, sabe? Deve ser bom isso. Eu nunca ganhei nenhuma... Então ela chegou em casa. Tirou a roupa molhada e largou na máquina. Saltitantes pelo piso de madeira, seus seios nus encontraram o único recipiente propício para receber o conteúdo: um jarro velho que fora de sua vó. Deitou ali as margaridas. Pegou a enócoa e a ofertou à cafeteira no canto da cozinha. Da porta do banheiro, olhou para a cena e viu que fez o certo: aquelas flores tocavam a sua alma. Sorriu. E ligou o chuveiro.

 

#2 Cinto preto pendurado atrás da porta marrom do quarto amarelo

Enquanto tirava o cinto da calça jeans, pensava na maneira que teria de improvisar algo para abrir mais um buraco nele. Alicate. Prego. Fogão. Sim, isso seria o melhor. O problema é que não havia um prego sequer na casa. O alicate tinha por causa do computador. O fogão... bem, todos tinham. Restava apenas o prego. Não seria fácil encontrar uma loja aberta àquela hora da noite. Teria de esperar até a manhã. Deixou a calça no chão e pendurou o cinto atrás da porta em um dos ganchos. Sentou-se na cama e suspirou. Seu olhar começou a se perder entre o aguaceiro. Tudo andava muito difícil. Sem perspectivas. Sem ajustes. Sem amor. Próprio ou não. A tarefa de seguir em frente parecia uma caminhada em um deserto onde apenas escorpiões teriam alguma chance. Pensou na família. Nos amigos. Na dor que aquilo causaria a todos eles. Diriam que a covardia havia tomado conta de si. Ficariam, primeiramente, em choque. Depois, em tristeza. Por fim, em luto raivoso. Viria a culpa de não terem enxergado os sinais. Mas sabia que não havia culpados nessa história. Lamentou que tudo isso pudesse acontecer em breve. Isso foi o que retardou aquele momento até então: a dor que iria infligir aos outros. Mas já não conseguia mais seguir adiante... Seus livros já estavam separados dentro do armário: cada pessoa querida iria receber sua cota. Havia sacado dinheiro e guardado no mesmo envelope do bilhete: a família não precisaria se onerar nessa ocasião. Olhou pela última vez o frasco de comprimidos que tomava há tempos. Deu um leve sorriso. Levantou-se. Pegou o cinto. Percebeu que não precisaria de um furo a mais para aquilo. O couro tinha uma textura estranha na garganta. Passou a ponta por cima da porta. Fechou sua vida com ela. O peso de seu corpo emagrecido, por fim, trouxe alívio à dor.

 

#3 Casal de crianças vestidas de caipiras na festa da escola

Aquele dia o pai pegou o lápis da mãe. Desses de pintar olho de moça. E passou no meu rosto várias vezes. Essa é sua barba, fião. Olhei no espelho e riscos como as gotas de chuva que eu costumava desenhar estavam cobrindo minha cara. Sempre quis ter barba, fiquei feliz. A mãe abotoou minha camisa xadrez e puxou minha calça mais para cima. Peguei meu chapéu de palha e cobri meu cabelo besuntado com gel. Na escola, a menina loira me esperava. Lembro que ela tinha bastante pelos nos braços. Era estranho. E ela era linda. Kelly. Com dois éles. Seu cabelo na altura dos ombros fazia um conjunto perfeito com suas bochechas ridiculamente avermelhadas com maquiagem da mãe. Ela era meio brava, sabe? Nenhum outro menino queria dançar a quadrilha com ela. Mas sempre fui destemido. As moças bravas me conquistaram sempre. Com Kelly não foi diferente. Professora, eu danço com ela. E treinamos durante dias na quadra da escola. Aquela coisa toda de olha a chuva, já passou, sabe? Criança tem de se submeter a cada coisa... O fato é que dançamos. E eu me senti importante dançando com a menina que ninguém queria dançar. Ela quase nunca sorria. Mas, naquela tarde, ao final da dança, ela me agradeceu e sorriu. Meu pai, então, pediu para tirar uma foto de nós dois. Kelly aceitou. Depois da foto, ela foi conversar com as outras meninas. Fiquei sozinho. Fui comer um enrolado de presunto e queijo no canto da cantina. Kelly foi meu primeiro amor.

 

#4 Banco da faculdade em meio às árvores durante uma noite de verão

Tum. Tum. Tum. O coração arfava naquele ritmo gostoso de quase falta de ar. Ao lado dele, ela. O ônibus podia ficar para mais tarde: nenhum dos dois queria ir embora. Estavam sentados afastados, no escuro, no banco em que muitos já devem ter se sentado. Cimento úmido. Pés na grama. Noite abafada. Ela olhava em seus olhos como se pudesse devorar sua alma. Amendoados. Brilhantes. Apaixonados. Ele retribuía. Sua mão em seu rosto. Seu pequeno e delicado rosto. Trazia para si. Sentia seus lábios. Seus pequenos e delicados lábios. Lambuzados de saliva, da maciez que só as bocas têm. Suas mãos desceram do rosto, pousaram eu sua barriga. Ela gentilmente puxou a camiseta para frente. Os dedos adentraram o tecido e percorreram o caminho até o topo. Sentiram a firmeza. A pinça do polegar-indicador suavemente roçava e puxava aquelas pequeninas partes intumescidas. Ela ajeitava o rosto em seu pescoço, exalando o ar quente de sua respiração ofegante. Ele foi descendo a mão, chegando ao final da camiseta. Reparou que as pernas iam se distanciando. Repousou a mão na coxa dela. Ela olhou em seus olhos já perdida. Fez um leve aceno com a cabeça enquanto engolia a respiração. Ele entendeu. Deslizou os dedos para o centro. O calor dali percorreu todo o seu corpo. Beijavam-se enquanto a mão dele formava o habitat de Afrodite. Ali ficaram mais um tempo. Escondidos dos transeuntes. Entenderam que, naquele instante, apenas ambos existiam no mundo.  

 

#5 Rabiscos desconexos em tinta azul sobre papel branco

Consulta. Estou cansado, sabe? Quero muito ir embora. Para onde? Daqui, desse mundo. Cada lugar aqui é uma lembrança, uma memória. E eu não sei mais lidar com tantas na minha cabeça. É assim que você enxerga o mundo, como memórias e apenas memórias? Por acaso seria diferente? Se eu ando, é porque guardei na memória como faço. Se falo, também. Se chego ao trabalho, é porque memorizei o trajeto. Se no elevador comento algo sobre o clima, é porque guardei na memória a visão da minha janela. Eu não consigo mais... Minha cabeça nunca para. Dia após dia ela vive martelando memórias. As boas machucam. As ruins, nem preciso retomar aqui. Eu não consigo mais viver, mas sou covarde demais para morrer. Até nisso eu fracassei... Fracassou? É necessário mudar essa perspectiva, você bem sabe. E como faço isso? Até remédio eu tomo. Não adianta. Olha, não é culpa sua, eu agradeço, de verdade, a sua ajuda durante todo esse tempo. Mas... esse vazio... Esse maldito vazio não sai mais de mim. Por que eu perco tudo o que amo? Coisas, empregos, pessoas... Eu falho com tudo e eles simplesmente vão embora. Eu sou tão feio assim? Causo tanto nojo nas pessoas a ponto de elas não quererem ficar ao meu lado, comigo? Você é uma pessoa extremamente interessante, cordial, tem charme. Tenho, é? Minhas memórias me dizem o contrário. Estou cansado de ser bom com os outros, de fazer o meu melhor e a vida não me dar nada em troca. Olha, eu queria muito acreditar em deus ou algo do tipo, para poder ter alguém a quem culpar por tanta dor. Mas você sabe que não sou assim. Minha racionalidade está me destruindo e só consigo pensar que gente como eu não merece estar nesse mundo: enquanto muitos sorriem, eu choro. Enquanto outros adoram viver, eu odeio. Eu me odeio por ser assim. E odeio o fato de saber que, ser assim, afasta todos que amo, que vou morrer sozinho por simplesmente não ter vida dentro de mim. Estou vazio. Sou vazio...

 

#6 Xícara de chá vazia ao lado de antitérmicos em uma prateleira com livros cheia de pó

Alguma coisa se passava com ela. Ardia em febre. Seu corpo estava fraco. Curvou-se violentamente e vomitou sobre a própria camiseta. Ele estava ali, ao lado dela, preocupado. Você precisa se limpar: consegue tomar banho? Não sei... Vem, eu vou te ajudar. Eu tenho vergonha. Ela começa a soluçar. Não precisa ter, eu só te apoio no chuveiro, pode ser? Tudo bem. Ele a leva até o banheiro. Isso, senta aí. Tira o cinto dela e desabotoa a calça, puxando o conjunto. Depois, levanta os seus braços e extrai a camiseta suja. Liga o chuveiro. Vem, vai ajudar a diminuir a febre. Verifica se a água está na temperatura boa. Ah, está fria! Não pode ser quente, você sabe... Aqui, o sabonete. Estende para ela. Devagar, seu corpo trêmulo é ensaboado. Ele fica de costas. Estou aqui na porta, quando acabar, me chama, ok? Está bem. Acabei. Ele pega a toalha e a cobre. Esfrega o tecido em seu corpo. Vamos voltar para o quarto. Troca a roupa de cama e a deita. Procura na gaveta uma calcinha, uma camiseta, um short. Devagar, a veste. Cobre com um lençol. Descansa um pouco, vou preparar alguma coisa. Busca na cozinha uma xícara e um saquinho de chá. Acha na mochila um comprimido. Volta ao quarto, ela está deitada, menos trêmula. Aqui, encosta um pouquinho mais para cima. Não gosto de chá. Eu sei, ele ri. Fará bem. Ela toma com o comprimido. Vou ficar aqui até você melhorar, está bem? Tenta dormir um pouco, estarei na sala, vou deixar a porta um pouco aberta. Ele senta no sofá e pega o primeiro livro que encontra. Quando abre os olhos, a manhã já está pronta. Espia pela porta e a vê dormindo. Vai para a cozinha e faz um café com pão amanhecido na frigideira. Ele não tem muitos dotes culinários. Leva para ela na cama. Bom dia, está melhor? Ela desperta e diz que sim. Ele oferta a comida. A boca dela devora o alimento. Desculpa, tá? Eu lhe dei um trabalhão... Estou tão envergonhada. Você me viu pelada, nossa. Eu nem prestei atenção nisso, só queria que você ficasse bem, não precisa se desculpar ou envergonhar. O silêncio reina entre eles. Ele nota uma lágrima escorrendo no canto do olho dela. O que houve? Está mal? Não... É que... Eu sei o que você sente. Queria sentir o mesmo. Você é uma pessoa tão boa... Ele respira fundo. Guarda a dor dentro de si. Entre seus lábios, o sopro: meu amor é incondicional, não depende de você retribuir ou não.

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