Tive um excelente professor de fotografia na pós. Ele era especializado em fotojornalismo, havia viajado o mundo, suas fotos eram impecáveis. Em suas aulas, analisávamos os fotógrafos mais famosos e me lembro muito bem de ele dizendo, sobre Cartier-Bresson, que aquele francês tinha “olhar fotográfico”, que não importava a máquina que carregava em mãos, ele conseguia, em um instante, congelar no tempo uma poesia. Sabia o exato momento em que devia pressionar o obturador. Eu tive um excelente professor de fotografia na pós. Mas nunca aprendi nada com as aulas.
Posso ter tido o conhecimento
básico de como operar uma câmera, regular a abertura, a exposição, a luz. A
fotografia, afinal, é a manipulação do tempo, deixando nele um registro. Mas
isso não é o suficiente. Não, não. É necessário bressonizar, ter o tal do “olhar
fotográfico”, saber o que enquadrar e quando apertar o botão. Não sou bom
nisso, mas guardo na memória as ações e sensações por trás do ato de se
empunhar uma arma tão poderosa como uma máquina fotográfica. Um perigo.
É cedo e todos estamos mais ou
menos sonolentos. O sacolejar da kombi na estrada embala meus pensamentos com
os olhos fechados enquanto ouço algumas frases e risos no banco atrás de mim. Eu
diria que a “juventude” é assim, mas conheço as pessoas que quebram o silêncio da
metade frontal do veículo com suas alegrias vindas lá do fundo: esboço um leve
sorriso de canto, satisfeito.
Está calor. Não gosto de calor.
Mas é como está e Deus deve estar ocupado em algum outro lugar. A gente chega,
desce, encontra os colegas. E também os cachorros. Caramelos e pretinhos pulam em
nossas pernas, recebendo a oferenda dos carinhos que tanto merecem. Gosto
deles. Sentem meu cheiro e recebem massagem no topo da cabeça e no queixo. Eles
irão nos acompanhar em meio às árvores, folhas, gramas e flores ao longo de
todo o dia. Nós seguimos aldeia adentro.
É o primeiro contato da maioria
dos estudantes com a escavação. Estão animados e ansiosos. Prestam atenção às
palavras do professor e da equipe auxiliar. Ele entende muito sobre o assunto,
tem bastante experiência: os alunos têm sorte – penso eu. Findados os esclarecimentos,
todos à obra. Cada um pega sua ferramenta e, em grupo, se agacha sobre o solo:
alguns marcam mais os joelhos do que outros, levando as impressões digitais do
dia para serem lavadas à noite em casa. Vejo bonés e chapéus, camisas curtas e
longas. E vejo chuva...
A água cai e afugenta todo mundo
para baixo de uma cobertura. Felizmente dura pouco e logo o sol volta a tomar o
seu lugar. Agora as coisas engrenam e um ritmo é estabelecido. Escuto, entre os
sons de galinhas, pintinhos, pássaros e perus, as vozes risonhas e indagativas
dos alunos. Olho para eles e percebo que conquistei o direito de estar ali, e
que é uma honra ser rodeado por pessoas tão incríveis. Zanzo de um ponto de
escavação para o outro, carregando a arma de Cartier-Bresson e registrando
aquilo que minha mente entende como importante. Vejo o pessoal empenhado nas tarefas. Vejo os colegas pacientemente norteando as escavações. Vejo a monitora explicando
algumas técnicas para os demais alunos e sinto orgulho da orientanda: registro
a cena. Depois subo o terreno para fotografar o grupo maior trabalhando. Alguns
suam na peneira; outros, na retirada de terra com as colheres.
Depois de um tempo ouço passos
rápidos entre as folhas, viro e não vejo nada. Espero mais um pouco e surgem
duas cabecinhas atrás de uma grande árvore: uma de cada lado, olhando para a
gente com timidez. Dou um tchau sorrindo e volto ao trabalho. Elas continuam
por lá, nos observando. Quando percebo que estão menos tímidas, faço um gesto apontando
para a minha câmera. Elas podem até falar pouco português, mas a curiosidade,
essa, é universal. As duas irmãs vão chegando devagarinho. Sem expressar dor,
eu me agacho para mostrar a câmera na altura dos olhos delas. As meninas
guaranis sorriem. Então mostro o visor da máquina e a possibilidade de, se
apertar o botão do obturador, capturar a beleza da aldeia. A mais velha é a
primeira: seu dedinho busca o botão e logo congela os alunos em uma pose
desfocada para sempre. A mais nova, ainda receosa, se aproxima mais. Digo para
ela tirar uma foto também. Seu dedo quase não tem força, então a mais velha
mostra a ela como se faz. Mais uma foto. Aponto a câmera para a monitora e falo
para tirarem uma fotografia. Enquanto elas buscam o enquadramento, sinto a
mão da mais velha em meu ombro, auxiliando o seu equilíbrio: sua mãozinha
quente me deixa emocionado – não tenho jeito com crianças, jamais esperaria um
gesto assim. Mais uma vez o botão é pressionado e, dessa vez, a foto sai
focada. Sinto uma pontinha de inveja porque as meninas tiraram uma foto mais
bonita do que as que eu já havia tirado. Elas provavelmente têm o “olhar
fotográfico” que me falta. Sortudas.
O dia avança, o almoço acaba,
nós voltamos ao trabalho. Os cães tentam buscar carinho entre as quadras, dificultando
um pouco a nossa labuta: mas é normal, o terreno é deles, afinal. Vez ou outra,
ouvimos alguém rindo de um colega que está sendo ameaçado pelo peru nervoso com
a nossa presença. Continuo registrando os momentos até que as meninas retornam.
Elas logo são convocadas para aprender como se faz a lida na peneira. Elas se
divertem e dão risada perto da mãe observadora. A mais velha de põe a escavar
ali perto com a colher e encontra um fragmento de cerâmica guarani muito
bonito. “Sortuda” – penso novamente.
O sol começa a querer ir embora
e nós também. A hora está avançada e devemos retornar para a universidade. Recolhe-se
as ferramentas. Cobre-se tudo com lona. Despede-se dos cachorros. Dá tchau para
as meninas e a mãe. Senta-se na kombi. Sacoleja-se até o ponto de chegada.
Deixo a câmera fotográfica no
laboratório. Nunca serei Cartier-Bresson. Só me resta escrever.