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A filha

Quando a mana foi embora, pai pareceu ressentido. Talvez por ser filha mulher, ter crescido agarrada a ele. O laço entre eles se intensificou depois que a mãe morreu. Eu sempre fui quieto, sem saber demonstrar direito o que sinto. A mana, ao contrário, era luz: acordava e dava bom dia, gostava de abraçar, ria à toa. Ela alegrava a casa. Por ser mais velha, chegou aquele momento na vida em que foi atrás dos sonhos. Passou em uma universidade longe e foi morar lá. O pai sabia que era para o bem dela, que ela devia lutar por uma vida melhor. Ele entendeu, mas se entristeceu. O tempo foi passando e ela só conseguia nos visitar por algumas poucas semanas durante o ano. Isso não diminuiu a dor do pai. Mas ele entendia, e nunca chorava na frente dela durante as despedidas.      Certo dia, acordei mais cedo que o normal e peguei o pai escutando as modas em seu radinho de pilha enquanto via os antigos álbuns de fotos que guardava no fundo da estante. Pareceu não perceber minha presença, e con
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Polaroids (#1 - #6)

  #1 Margaridas em enócoa sobre a mesa de café Ali, do outro lado da rua, um mundaréu de gente se apressava na hora da saída do trabalho. Se a situação não fosse complicada o bastante, chovia. Não uma chuva qualquer: uma chuva de meados de verão, um torrencial acompanhado de raios e trovões desses que a gente se encolhe na hora que vê o clarão. Com os sapatos molhados, ela esperava debaixo do toldo da loja. Sem guarda-chuva? Não, não. Ela possuía um na bolsa tiracolo. Mas, esperta que era, sabia que nada daria conta naquele momento. Só restava ficar parada, junto com mais alguns, vendo os carros passarem nos pavimentos esburacados jogando água nos corajosos que possuíam hora marcada para chegar. Ela olhava o telefone. Seu rosto, no lusco-fusco da tempestade, ganhava tons amarelados, azulados e acinzentados. Ela parecia sorrir, às vezes. Talvez fosse uma boa conversa. Ou alguma foto engraçada. Vez e outra, olhava para trás, observando a vitrine da loja. Havia muitas cores ali dentro.

Um conto de Ana

Lembro que lhe conheci em meio às trevas. Estava escuro naquele dia. Apenas a luz do projetor banhava a sala com uma temática medieval. Eu, atrás da filmadora, observava pelas lentes o professor discursando em latim. Meu enquadramento, perfeito, foi incomodado pela presença de quase um metro e sessenta surgindo no canto direito e seguindo para o inferior, sentando-se. “Ora, ora” - penso eu. “Quem ousa adentrar a pintura que faço neste momento?”. Findada a apresentação, as luzes se acendem e percebo uma moça de cabelos longos lisos pretos e olhos grandes. Ela está sorrindo para uma amiga, conversando. Desligo a filmadora e, chegando em casa, edito o vídeo tentando cortar aquela mulher da cena. Mal eu sabia que seria impossível apagá-la da minha vida...      Algum tempo depois, reúnem-se estudantes para discorrer sobre seus projetos de pesquisa. Lá estou eu: sem projeto, mas tentando dar algum apoio. Ao longo de alguns encontros, percebo aquela moça da palestra presente em sala. Ela é

Um dia de campo

Tive um excelente professor de fotografia na pós. Ele era especializado em fotojornalismo, havia viajado o mundo, suas fotos eram impecáveis. Em suas aulas, analisávamos os fotógrafos mais famosos e me lembro muito bem de ele dizendo, sobre Cartier-Bresson, que aquele francês tinha “olhar fotográfico”, que não importava a máquina que carregava em mãos, ele conseguia, em um instante, congelar no tempo uma poesia. Sabia o exato momento em que devia pressionar o obturador. Eu tive um excelente professor de fotografia na pós. Mas nunca aprendi nada com as aulas.            Posso ter tido o conhecimento básico de como operar uma câmera, regular a abertura, a exposição, a luz. A fotografia, afinal, é a manipulação do tempo, deixando nele um registro. Mas isso não é o suficiente. Não, não. É necessário bressonizar, ter o tal do “olhar fotográfico”, saber o que enquadrar e quando apertar o botão. Não sou bom nisso, mas guardo na memória as ações e sensações por trás do ato de se empunhar uma

À francesa

Esse é o meu último. Eu juro.      É a última vez que vejo suas mãos. Aqueles dedos que ficam firmes em uma posição, aguardando o toque tímido das minhas falanges. Elas escorregam sobre eles, sentindo em uma fração de segundos a topografia de sua pele, cada uma das quadrículas e polígonos que formam a superfície das costas de seus dedos. Você me olha e diz que sou esquisito.      Vejo, então, seus olhos pela última vez. Eles se fixam nos meus, e eu não aguento a pressão. Desvio para pensar. E quando volto a falar, só consigo passear minha visão pela esclerótica e pupila que estão marcadas em você. Talvez alguém pudesse dizer que seus olhos são profundos. Um poeta diria que se perderia em suas imensidões. Não eu. Para mim, eles são rasos. E isso é o que mais amo neles: sei que posso adentrar essas águas sem o risco de me afogar. São rasos, são seguros. São tão vívidos. Como a gente poderia morrer em uma banheira repleta de vida? Você sorri e diz que sou bobo.      Pela última vez, v

Ratatouille

Já não foi fácil escolher. Não levo jeito, acho. Não para isso. Não, não. A gente lê o que deve ser feito e como deve ser escolhido, mas, ali, na hora, a teoria não encontra a prática. Procura pelas cascas mais lisas, sem machucados. Tem de ter a cor boa, de bochechas de Molly Bloom, nada daquela palidez do Dezenove. Aperta daqui, pressiona dali, e ninguém fala sobre o assédio aos legumes na grande mídia. A gente faz isso no mercado, mas poucos parecem se importar... Depois de escolhidos, levamos para a balança e torcemos para que os dígitos sempre fiquem em valores baixos. Até que dessa vez deu certo. Foi pouca quantidade. Hora de sacolar e levar para a geladeira.      E ali ficam por alguns dias, na preguiça de terem suas peles arrancadas, serem esfolados como o latifundiário em Renascer. A vida leguminosa não é fácil. O frio que devem sentir na gaveta do necrotério chamado “geladeira” é algo inenarrável, quiçá. Mas chega a hora, enfim, em que o desânimo da solidão perde para a fom

Deckard 1138

Duas coisas incomodavam o Sr. K...: a primeira era o seu pássaro, uma calopsita, que há quatro dias estava tristonha, amuada no poleiro da gaiola, sem soltar um pio, tadinha da bichinha; a segunda, era o atraso na visita que receberia aquele dia – havia se passado mais de meia hora e nada de ela chegar.      Há exatamente noventa dias, o Sr. K... recebeu a carta da Companhia de Desligamento. “Prezadíssimo Sr. K..., viemos por meio desta informar que chegou a sua hora! Como o senhor bem sabe, novas gerações precisam de espaço e conforto: somente assim nosso país continuará a ser forte e relevante. Pedimos a gentileza de acertar todas as contas em pendência (caso as tenha): lembramos que os novos inquilinos não arcarão com possíveis custos após o seu desligamento, ficando a dívida para até a sua décima primeira geração. Por favor, enumere na Ficha dos Afazeres, anexada, as atividades que deseja serem realizadas após a sua partida do imóvel. Na esperança de encontrá-lo na mais perfeit