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A filha

Quando a mana foi embora, pai pareceu ressentido. Talvez por ser filha mulher, ter crescido agarrada a ele. O laço entre eles se intensificou depois que a mãe morreu. Eu sempre fui quieto, sem saber demonstrar direito o que sinto. A mana, ao contrário, era luz: acordava e dava bom dia, gostava de abraçar, ria à toa. Ela alegrava a casa. Por ser mais velha, chegou aquele momento na vida em que foi atrás dos sonhos. Passou em uma universidade longe e foi morar lá. O pai sabia que era para o bem dela, que ela devia lutar por uma vida melhor. Ele entendeu, mas se entristeceu. O tempo foi passando e ela só conseguia nos visitar por algumas poucas semanas durante o ano. Isso não diminuiu a dor do pai. Mas ele entendia, e nunca chorava na frente dela durante as despedidas.

    Certo dia, acordei mais cedo que o normal e peguei o pai escutando as modas em seu radinho de pilha enquanto via os antigos álbuns de fotos que guardava no fundo da estante. Pareceu não perceber minha presença, e continuou segurando uma foto dele com a minha irmã. Sentei-me ao seu lado no sofá e fui mexendo nos álbuns. O programa do rádio deixou de tocar as músicas e desembestou a falar de política. Pai desligou o aparelho e continuou observando a foto, passando seu polegar sobre o rosto da mana congelado no tempo. “É a segunda vez...” – balbuciou. Fiquei um tempo aguardando a continuação, mas nunca veio. Eu não era muito de falar sobre coisas não triviais com o pai, então tive de me encher de coragem para perguntar o que ele havia dito.

    “O nome de sua irmã” – disse ele – “não foi escolhido à toa”. “Convenci sua mãe a dar esse nome a ela, mas nunca expliquei porquê”. Olhando para a foto, quase hipnotizado, o pai continuou a falar com aquela voz grossa, difícil de ser compreendida se não prestar bastante atenção. Contou que o nome da mana era homenagem a uma pessoa que conheceu quando jovem. Uma moça especial. De tão linda, pai se apaixonou na hora, mas guardou dentro de si esse sentimento por um tempo. Essa moça, ele me contou, era animada que só ela, sorrindo para tudo e se empolgando com as coisas boas que lhe aconteciam. O pai, assim como eu, era quieto, de poucas palavras, mas, misteriosamente, essa moça continuava falando com ele, dia após dia, até o momento em que ele criou coragem para se declarar. “Isso deu um rebuliço danado” – me disse. “Ela deixou claro que não queria minha companhia desse jeito, sabe?”. Segundo ele, ficaram dias sem conversar, e ele teve de aprender a criar uma arapuca no peito para prender esse amor. A vida foi seguindo seu rumo, e o contato foi sendo retomado. Tornaram-se amigos novamente, e o pai foi aprendendo a lidar com isso, sem nunca mais ter falado algo do tipo. “Ou ao menos, pensava ter aprendido” – ele baixou a cabeça. Certo dia, o pai teve uma crise de ciúmes porque a moça estava saiu com um rapaz. Chateado, confessou a ela seu crime e isso estragou tudo o que havia entre eles. A moça não quis mais falar com o pai. “Isso me doeu bastante...” – ele respirou profundamente. “Eu acabei perdendo quem era importante para mim justamente por gostar dela”. O pai, então, levantou os óculos para enxugar o canto dos olhos.

    “Quando sua irmã nasceu, sua mãe e eu não sabíamos se seria menina ou menino. Quando peguei ela pela primeira vez no colo, vi pela janela que um pedacinho do sol surgia entre as nuvens daquele dia pesado. Olhei o rosto de sua irmã e, juro, ela deu um sorriso. Foi aí que eu soube. Foi aí que eu entendi o recado que Deus me mandava. Naquele momento, eu já sabia o nome que daria para a sua irmã”.

    O pai, então, voltou a olhar a foto em seu silêncio típico. “É a segunda vez que alguém com esse nome se afasta de mim...”. Ele colocou a foto de volta no álbum e o fechou. Ligou o radinho novamente. A viola embalava seus pensamentos profundos. Então entendi que meu pai era uma pessoa comum também. Um homem que foi perdendo pedaços ao longo do caminho, e que essas partes, mesmo encontrando outras, jamais voltaram a se encaixar dentro dele.

“Só queria que ela me perdoasse por ser assim...”.

Eu nunca soube para qual dos dois nomes o meu pai disse isso.

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