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Um conto de Ana

Lembro que lhe conheci em meio às trevas. Estava escuro naquele dia. Apenas a luz do projetor banhava a sala com uma temática medieval. Eu, atrás da filmadora, observava pelas lentes o professor discursando em latim. Meu enquadramento, perfeito, foi incomodado pela presença de quase um metro e sessenta surgindo no canto direito e seguindo para o inferior, sentando-se. “Ora, ora” - penso eu. “Quem ousa adentrar a pintura que faço neste momento?”. Findada a apresentação, as luzes se acendem e percebo uma moça de cabelos longos lisos pretos e olhos grandes. Ela está sorrindo para uma amiga, conversando. Desligo a filmadora e, chegando em casa, edito o vídeo tentando cortar aquela mulher da cena. Mal eu sabia que seria impossível apagá-la da minha vida...

    Algum tempo depois, reúnem-se estudantes para discorrer sobre seus projetos de pesquisa. Lá estou eu: sem projeto, mas tentando dar algum apoio. Ao longo de alguns encontros, percebo aquela moça da palestra presente em sala. Ela é extrovertida, ri e fala com todos. Eu, sempre preso em mim mesmo, escondo-me na quietude. Isso dura até o momento da sede. Estava calor naquele dia e fui beber água no corredor. Ali estou eu enchendo minha garrafa quando olho para trás e percebo que estou fazendo a aquela moça aguardar um tempo desnecessariamente longo. Ana. Ana dos cabelos lisos longos. Ana dos olhos grandes. Ana de sorriso belo. A Ana medieval. A Ana que estudava Grécia. Ana Tanagra.

    Minha timidez foi sendo vencida aos poucos e começamos a conversar ao longo dos encontros. Certo dia, sabendo que o projeto dela seria avaliado, fiz questão de lê-lo no ônibus mesmo, a caminho da reunião. Eu, um ser de poucas falas, tomei a palavra e analisei o texto dela, apontando, em minha arrogância de recém-doutor, como ele poderia ser melhorado. Ana sorri. Agradece. Ela estava usando uma regata cinza clara. Nunca esqueci esse dia, Ana.

    Para quem não conhece Ana, saiba que ela tem um coração enorme. Ciente do meu gosto exacerbado por doces, uma vez levou uma fatia de bolo para mim. Isso foi bastante significativo: essa fatia viajara quase cem quilômetros para chegar em minhas mãos. Só tornou o sabor ainda melhor. Eu só consegui retribuir o ato ofertando macarrão instantâneo repleto de sódio, mas Ana aceitou. E nossas conversas foram acontecendo dentro e fora da universidade. Ana se tornara minha amiga.

    Vi Ana sorrir. Vi Ana chorar. Vi sua vida se construir, e vi uma parte dela desmoronar. Vi Ana seguir em frente. Vi Ana se mestrar. Vi Ana cair, e a vi quase se acabar. Você não tem ideia do quanto sofri quando quase lhe perdi. E não tem ideia da alegria que senti ao vê-la voltar a sorrir. Ana, de quase um metro e sessenta, é gigante demais para que eu a veja sem poder olhar para cima.

    Hoje Ana reinicia a própria vida. Mais livre, mais tranquila. Ana tem dois gatos que ama. Dizem que eles são um tanto infernais, é verdade, mas que mãe não ama os próprios filhos? Ela divide seu amor entre eles e os muitos livros que tem. Isso é algo que sempre devemos julgar nas pessoas: se elas possuem mais livros do que roupas. Ana é um caso assim: e esse é mais um motivo de ela ser importante para mim. Podemos conversar sobre qualquer coisa com Ana, ela sabe de tudo. Se já é assim tão jovem, imaginem quando envelhecer. Se Ana, desse jeito, já é admirável, fico pensando como ela será daqui alguns anos, quando todos os problemas tiverem passado.

   Estou longe de Ana e não posso lhe dar um abraço. Mas minha amizade está aqui, Ana: o que precisar, eu faço. Desejo sempre sua felicidade. Ainda vamos rir disso tudo. Confio na sua força.

    A cerveja, dessa vez, eu pago.

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