Pular para o conteúdo principal

À francesa

Esse é o meu último. Eu juro.

    É a última vez que vejo suas mãos. Aqueles dedos que ficam firmes em uma posição, aguardando o toque tímido das minhas falanges. Elas escorregam sobre eles, sentindo em uma fração de segundos a topografia de sua pele, cada uma das quadrículas e polígonos que formam a superfície das costas de seus dedos. Você me olha e diz que sou esquisito.

    Vejo, então, seus olhos pela última vez. Eles se fixam nos meus, e eu não aguento a pressão. Desvio para pensar. E quando volto a falar, só consigo passear minha visão pela esclerótica e pupila que estão marcadas em você. Talvez alguém pudesse dizer que seus olhos são profundos. Um poeta diria que se perderia em suas imensidões. Não eu. Para mim, eles são rasos. E isso é o que mais amo neles: sei que posso adentrar essas águas sem o risco de me afogar. São rasos, são seguros. São tão vívidos. Como a gente poderia morrer em uma banheira repleta de vida? Você sorri e diz que sou bobo.

    Pela última vez, vejo seus lábios. A boca que nunca provei. Apenas imagino que seja tão repleta de sabor quanto a sua alma, temperada com toques de pimenta e mel. Queria que algum papiloscopista pudesse desvendar a marca de seus lábios em meu polegar. Observaria que foram tocados com a delicadeza que mereceram, e encontraria dois arcos opostos por um vazio: o seu beijo na digital. E quando eles se abrem para sorrir, a concepção de tempo torna-se braudeliana. Eu os observo quando você não me olha. Você me abraça e diz que sou único.

    A última despedida chega em forma de abraço. Tenho medo de lhe machucar. Sou firme, mas gentil. Viro a cabeça mais para a direita apenas para sentir o seu cheiro. É uma mistura de gratidão com saudade, e ele marca a minha roupa. Fecho os olhos porque sei que você não pode me ver. Aproveito os segundos porque eles serão os últimos. Sinto o calor sumir, seu corpo se descola do meu. Diz alguma coisa carinhosa. Eu, esquisito, bobo e único, respondo qualquer coisa sem pensar. Você é uma dose pura de uísque. Você se vira e vai embora.

    Esse foi o meu último. Eu juro.

    Sempre é o último.

Postagens mais visitadas deste blog

Caveira safada

Era aquela maldita caveira novamente.               - Ei, puto, chegue cá!             E ela veio, meio cambaleante, com seu ritmado compasso de fêmur. Caveira mexicana. Sorria com os amarelados-pontos-temerosos-de-dentistas. Trazia um charuto entre os finos dedos da ossatura direita.               - Mas o que faz aqui novamente, peste?               - Sabe como é, caveirando... Invejando os que têm carne.             - Porra, esse povo deve tomar um susto, hein!             - Nem me fale. Não sei porque tanto medo. Uma caveirinha tão simpática como eu.             Coçou as costelas.             - O que é isso aí?             - Isso o que?             - Preso aí, velho.             - Presente para usted.             E retirou uma grande garrafa de rum.             - Conseguiu onde?             - Dei sorte. Geralmente nessa época, só encontro aguardente sem graça. Isso eu roubei de macumba de rico.             Ele cuspiu.             - Cacete, macumba?!

A filha

Quando a mana foi embora, pai pareceu ressentido. Talvez por ser filha mulher, ter crescido agarrada a ele. O laço entre eles se intensificou depois que a mãe morreu. Eu sempre fui quieto, sem saber demonstrar direito o que sinto. A mana, ao contrário, era luz: acordava e dava bom dia, gostava de abraçar, ria à toa. Ela alegrava a casa. Por ser mais velha, chegou aquele momento na vida em que foi atrás dos sonhos. Passou em uma universidade longe e foi morar lá. O pai sabia que era para o bem dela, que ela devia lutar por uma vida melhor. Ele entendeu, mas se entristeceu. O tempo foi passando e ela só conseguia nos visitar por algumas poucas semanas durante o ano. Isso não diminuiu a dor do pai. Mas ele entendia, e nunca chorava na frente dela durante as despedidas.      Certo dia, acordei mais cedo que o normal e peguei o pai escutando as modas em seu radinho de pilha enquanto via os antigos álbuns de fotos que guardava no fundo da estante. Pareceu não perceber minha presença, e con

Um dia de campo

Tive um excelente professor de fotografia na pós. Ele era especializado em fotojornalismo, havia viajado o mundo, suas fotos eram impecáveis. Em suas aulas, analisávamos os fotógrafos mais famosos e me lembro muito bem de ele dizendo, sobre Cartier-Bresson, que aquele francês tinha “olhar fotográfico”, que não importava a máquina que carregava em mãos, ele conseguia, em um instante, congelar no tempo uma poesia. Sabia o exato momento em que devia pressionar o obturador. Eu tive um excelente professor de fotografia na pós. Mas nunca aprendi nada com as aulas.            Posso ter tido o conhecimento básico de como operar uma câmera, regular a abertura, a exposição, a luz. A fotografia, afinal, é a manipulação do tempo, deixando nele um registro. Mas isso não é o suficiente. Não, não. É necessário bressonizar, ter o tal do “olhar fotográfico”, saber o que enquadrar e quando apertar o botão. Não sou bom nisso, mas guardo na memória as ações e sensações por trás do ato de se empunhar uma