Pular para o conteúdo principal

Ratatouille

Já não foi fácil escolher. Não levo jeito, acho. Não para isso. Não, não. A gente lê o que deve ser feito e como deve ser escolhido, mas, ali, na hora, a teoria não encontra a prática. Procura pelas cascas mais lisas, sem machucados. Tem de ter a cor boa, de bochechas de Molly Bloom, nada daquela palidez do Dezenove. Aperta daqui, pressiona dali, e ninguém fala sobre o assédio aos legumes na grande mídia. A gente faz isso no mercado, mas poucos parecem se importar... Depois de escolhidos, levamos para a balança e torcemos para que os dígitos sempre fiquem em valores baixos. Até que dessa vez deu certo. Foi pouca quantidade. Hora de sacolar e levar para a geladeira.

    E ali ficam por alguns dias, na preguiça de terem suas peles arrancadas, serem esfolados como o latifundiário em Renascer. A vida leguminosa não é fácil. O frio que devem sentir na gaveta do necrotério chamado “geladeira” é algo inenarrável, quiçá. Mas chega a hora, enfim, em que o desânimo da solidão perde para a fome e temos de selecionar quem irá para a panela, quem dará a vida para sustentar outra vida. É poético, sabe? Essas coisas têm beleza. Então escolho minhas vítimas e, desastrosamente, as corto em fatias enquanto o molho feito de tomates agrotoxicados me lembra as lavas de Mordor, pululando da panela para o fogão que terei de limpar depois. Cansa só de pensar, mas é o jeito.

    Ajeito tudo da maneira mais ordenada possível na travessa. Espremo aqui e ali. Coube. Azeite por cima. Sal. Pimenta. Esquecimento de papel alumínio como cobertor. Forno no abate. Ali tudo ferve por quase uma hora. Tempo suficiente para a gente pensar na vida e lavar o que estava sujo. É inverno e a água é fria: mas, aqui, ainda é mais quente do que o clima fora dela. O relógio vai em contagem regressiva, trazendo um quentinho gostoso quando chego perto para ver o andamento. O arroz está borbulhando no fogão. É o melhor que consigo fazer. Tudo bem, só eu que vou comer mesmo. Se ficar ruim, azar. Mea culpa.

     Ledo engano. Ela chega. Em seu casaco preto e lábios vermelhos. Olhos inquisidores e perspicazes. “Boa tarde!” – ela diz. Abraço. Eu conseguiria identificar o perfume dos cabelos no meio da torcida do Flamengo, se fosse preciso. Senta, toma alguma coisa. A janela da sala parece perceber sua presença e joga mais sol. A cortina começa com sua safadeza e, apoiada pelo vento, vai roçar o rosto dela enquanto sorri no sofá. Vermeer teria inveja. O forno apita. Meu coração pára: ela vai gostar? Agindo naturalmente, acalmo as mãos que levam a travessa até a mesa. Ela se serve, deixando seu anel brilhante refletir a luz amarelada artificial sobre a mesa de almoço/jantar. Pego minha porção e me sento de frente a ela. É agora. A hora da verdade. Seus lábios se mexem enquanto mastiga, causando o congelamento do Tempo. Ela abre aquele sorriso. “Ficou muito bom!” – diz rindo. Ufa. Finalmente consigo comer. E a gente conversa enquanto almoça. E percebo, mais uma vez, que a alegria dela é algo que falta dentro de mim. Nunca fui assim. Talvez nunca seja. Mas me sinto satisfeito por ela ter comido e gostado. Para mim, estava sem sabor: o nervosismo apenas criou uma mastigação automática em que eu me perdia observando o conjunto (ela, prato, alegria) durante o tempo em que durou o banquete.

    Ela se vai. Levando consigo seu porte bem arrumado e chique. Leva também o meu abraço. Subo. Fecho a porta. Apago a luz. O sol já se foi.

Postagens mais visitadas deste blog

Caveira safada

Era aquela maldita caveira novamente.               - Ei, puto, chegue cá!             E ela veio, meio cambaleante, com seu ritmado compasso de fêmur. Caveira mexicana. Sorria com os amarelados-pontos-temerosos-de-dentistas. Trazia um charuto entre os finos dedos da ossatura direita.               - Mas o que faz aqui novamente, peste?               - Sabe como é, caveirando... Invejando os que têm carne.             - Porra, esse povo deve tomar um susto, hein!             - Nem me fale. Não sei porque tanto medo. Uma caveirinha tão simpática como eu.             Coçou as costelas.             - O que é isso aí?             - Isso o que?             - Preso aí, velho.             - Presente para usted.             E retirou uma grande garrafa de rum.             - Conseguiu onde?             - Dei sorte. Geralmente nessa época, só encontro aguardente sem graça. Isso eu roubei de macumba de rico.             Ele cuspiu.             - Cacete, macumba?!

A filha

Quando a mana foi embora, pai pareceu ressentido. Talvez por ser filha mulher, ter crescido agarrada a ele. O laço entre eles se intensificou depois que a mãe morreu. Eu sempre fui quieto, sem saber demonstrar direito o que sinto. A mana, ao contrário, era luz: acordava e dava bom dia, gostava de abraçar, ria à toa. Ela alegrava a casa. Por ser mais velha, chegou aquele momento na vida em que foi atrás dos sonhos. Passou em uma universidade longe e foi morar lá. O pai sabia que era para o bem dela, que ela devia lutar por uma vida melhor. Ele entendeu, mas se entristeceu. O tempo foi passando e ela só conseguia nos visitar por algumas poucas semanas durante o ano. Isso não diminuiu a dor do pai. Mas ele entendia, e nunca chorava na frente dela durante as despedidas.      Certo dia, acordei mais cedo que o normal e peguei o pai escutando as modas em seu radinho de pilha enquanto via os antigos álbuns de fotos que guardava no fundo da estante. Pareceu não perceber minha presença, e con

Um dia de campo

Tive um excelente professor de fotografia na pós. Ele era especializado em fotojornalismo, havia viajado o mundo, suas fotos eram impecáveis. Em suas aulas, analisávamos os fotógrafos mais famosos e me lembro muito bem de ele dizendo, sobre Cartier-Bresson, que aquele francês tinha “olhar fotográfico”, que não importava a máquina que carregava em mãos, ele conseguia, em um instante, congelar no tempo uma poesia. Sabia o exato momento em que devia pressionar o obturador. Eu tive um excelente professor de fotografia na pós. Mas nunca aprendi nada com as aulas.            Posso ter tido o conhecimento básico de como operar uma câmera, regular a abertura, a exposição, a luz. A fotografia, afinal, é a manipulação do tempo, deixando nele um registro. Mas isso não é o suficiente. Não, não. É necessário bressonizar, ter o tal do “olhar fotográfico”, saber o que enquadrar e quando apertar o botão. Não sou bom nisso, mas guardo na memória as ações e sensações por trás do ato de se empunhar uma