Embora a lógica aponte para um domingo, muito provavelmente era um sábado. Talvez uma sexta? Devido ao fato de os primos terem ido dormir lá em casa, arrisco a dizer que não poderia ser um domingo, uma vez que é nítida a imagem de a gente indo à locadora alugar jogos durante o dia. Então, sim: não era um domingo. Era qualquer outro dia. Mas não um domingo. Domingos são morosos, em ritmo de ansiedade noturna pela segunda-feira. Aos domingos a gente come e morre. E se arrepende disso quase com uma culpa cristã, martelando na alma o desperdício de vinte e quatro horas em absoluto nada (como se fosse errado descansar). Para fins de falha de memória, vamos assumir que era um feriado de sexta, tudo bem? Assim eu consigo justificar a ida à locadora durante o sábado e o almoço em família no domingo antes de meus primos serem devolvidos aos meus tios.
Pois bem. Quando criança, a gente não tem muita opinião. Bom, até temos, mas ela nunca é ouvida ou respeitada. Comigo não foi diferente: sempre fui uma criança chata, que não gostava de sair de casa e ver gente (continuo assim, mas com quase quatro décadas nas costas). Eu falava “não”, mas lá estava eu no banco de trás do carro com meu irmão, indo para algum canto que meus pais quisessem. E quase todo ano a gente ia para uma quermesse não tão perto de casa, mas ainda assim na Zona Leste. Era uma quermesse de uma organização que cuidava de crianças órfãs e também com deficiência intelectual. Como quase tudo desse gênero, o local era ligado à Igreja católica, com irmãs gerindo o estabelecimento. Lembro muito bem disso porque, para mim, elas sempre tiveram cheiro de cemitério. Não me leve muito a mal por causa disso, sabe? Deve ser o cheiro daquelas roupas pesadas que usam, sei lá. Mas eu nunca consegui sentir qualquer resquício de aroma nesse pessoal da igreja que não seja o de parafina derretida em cemitério. Talvez seja proibido usarem perfume, não sei. Mas isso sempre me incomodou... E incomodava ainda mais quando criança. E elas chegavam perto e mexiam nos meus cabelos e apertavam minhas bochechas de criança gorda com aquelas mãos puras de quem só reza na vertical: sinto como se fosse agora o cheiro de morte impregnando meu nariz vindo de suas mãozinhas de hamster afoito. Se eu tivesse de apontar o momento exato em que o ateísmo entrou na minha vida, diria que foi esse.
O lugar da quermesse era imenso.
É claro que a percepção de escala para uma criança é diferente, mas ainda hoje
é grande. A gente chega antes do evento começar, de manhãzinha, para ajudar nos
preparativos. Meu tio era quase que um sócio daquilo, participando
religiosamente ano após ano. Aí, dessa vez, convenceu meu pai a ajudá-lo. E,
por tabela, meu irmão e eu tivemos de auxiliar os dois. Um outro tio meu, que
deus o tenha, dizia que eu tinha mãos de urso, mãos grandes. E usaram isso
contra mim naquele dia: tornei-me estivador, percorrendo o espaçoso quintal do
festival de um lado para o outro, carregando coisas, ajudando meu tio a montar
a barraca de pescaria para a quermesse. Pode parecer que eu esteja reclamando,
mas, na verdade, eu me senti bem por me acharem útil. Eu estufava o peito e
carregava as caixas na frente das meninas do orfanato, enquanto elas ficavam de
risinhos. Uma delas, inclusive, enquanto estávamos debruçados no balcão da
barraca do tio, agarrou meu braço de supetão e disse “Quero casar com você!”.
Eu devo ter ficado roxo na hora, uma vez que vermelho eu já estava de cansaço.
Tio, pai, irmão, as meninas ao lado da minha noiva... todo mundo riu da minha
cara. A sensação foi péssima. Porém, nunca esqueci o nome da garota assanhada:
Maria do Carmo. Ela tomou a iniciativa, sabe? Mérito total dela, claro. O
problema é que, até hoje, eu sou meio assim: sempre acabo aguardando
iniciativas de outras Marias do Carmo. Sou péssimo nessa Arte. E meu trauma
devo à Maria do Carmo. Obrigado, Maria do Carmo.
A desvantagem de ser um menino
gordinho é que as pessoas sempre achavam que eu estava com fome. Sim, eu sempre
estava com fome, mas isso não significava que eu comia a toda hora. Porém,
aquele dia, fazia um calor dos infernos. E eu bebi um monte de refrigerante. E,
óbvio, a bexiga encheu. Foi aí que comecei a me dar conta das vantagens de ser
criança: eu podia entrar em lugares proibidos para muitos adultos. Não foi
diferente: as irmãs me deixavam entrar no setor meio segregado delas para devolver
a Coca-cola à natureza. Com isso, pude observar a arquitetura bonita daquele
prédio por dentro. Lembro de alguns vitrais banhados por luz do fim da tarde.
Era lindo, confesso. Embora o banheiro fosse meio escuro, dando um pouco de
medo de que alguma Mulher de Branco pudesse entrar: nesse caso, alguma freira. Quando
a última gota caía e a descarga era acionada, eu voltava pronto para beber mais
um copo de refrigerante e recomeçar o ciclo. Além de comer, é claro: os pães
que as irmãs assavam eram especialmente bons. E isso é meio paradoxal, eu sei.
Porque as mãos delas, que para mim cheiravam à morte, amassavam aquelas massas
e se tornavam em coisas divinamente gostosas. Talvez exista aí alguma ironia de
um mundo superior: da morte gerando vida, essas coisas. Só sei que eu me
acabava naquilo.
À noite, quando a quermesse já
estava no auge, todos foram para frente do palco ali montado. Para a minha
felicidade, haveria um show do Grupo Chocolate. Sei que muitos devem agora se
perguntar: “Mas que diabos é isso?”. Ah, parvo leitor, mal sabe o sucesso que o
Grupo Chocolate fez entre as crianças na minha época! Era uma família formada
pelo pai – o ótimo Cláudio Fontana –, a esposa, e um casal de filhos. Cantavam
várias canções de refrões pegajosos e usavam roupas coloridas. E eles estavam
ali, na minha frente! E eu assisti ao show deles e, ao final, fui conhecê-los e
ainda ganhei um disco de vinil autografado: guardo até hoje, mesmo não tendo
mais vitrola. “Choco-choco-choco... é de cho-co-la-te”. Um clássico atemporal.
Um terror dos diabéticos. Uma noite que terminou da melhor maneira possível.
Estranhamente, acho que essa foi
a última vez em que pisamos naquela quermesse. Eu, ao menos. Mas esse dia nunca
saiu da minha cabeça. Acho que foi por causa da Maria do Carmo. Ou do Grupo
Chocolate. Ou por causa da dor no estômago no dia seguinte. Mas a verdade é que
essa era a única quermesse que eu achava suportável. Fui em várias outras, mas
a “quermesse nas freiras”, como meus pais chamavam, foi minha favorita. O lugar
ainda está lá, no Jardim Imperador. O trabalho bonito que eles fazem ao longo
de quase meio século continua relevante. Não sei se ainda há quermesse...
Talvez um dia eu volte lá para ver. Mas dessa vez ficarei longe da Maria do
Carmo: não pretendo casar ainda.