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Areté

Uma vez eu li, em algum lugar, o Foucault falando sobre si mesmo, dizendo que não era necessário saber o que ele era exatamente, pois, se soubéssemos o que diríamos ao final de um livro, teríamos a coragem de escrevê-lo? Talvez Foucault não entendesse muito bem o processo de escrita literária, ou apenas tenha sido um escorregão dele, mas creio que a mensagem desejada foi alcançada.

Lá estava eu, com meu copo de plástico repleto de café, em uma manhã outonal próxima de meu aniversário. Havia chegado mais cedo do que o costume, o laboratório ainda não estava aberto para começar o dia de trabalho. Ainda não era adulto, mas já havia me estragado com a leitura compulsória de coisas fantasiosas e carregava orgulhosamente um exemplar d’A Sociedade do Anel debaixo do braço. Eu era estagiário e ganhava pouco, é claro. Mas eu usava o dinheiro para pagar meu curso técnico e o resto gastava com as mesmas bobagens que consumo até hoje: músicas, filmes, livros. E uma vez atrasei o pagamento da mensalidade porque emprestei quase todo o salário para a senhora que cuidava da limpeza da empresa, que tinha uma vida bem difícil. Não é minha intenção ser canonizado aqui, longe de mim. Nunca falo sobre esse tipo de coisa com ninguém, é algo bastante íntimo entre as duas partes envolvidas. Mas puxo isso da memória para, talvez, justificar algo que ela me disse naquela manhã em que eu bebia o café quente e ficava ansioso com a hora em que a moça do atendimento telefônico passaria, pois eu era todo apaixonado por ela. (Para variar, ela me deu um fora, mas tudo bem). Enquanto bebericava, a senhora chegou perto de mim e colocou a mão sobre meu peito, na altura do coração. “Você tem os olhos gentis, mas tristes. E sua maior qualidade está aqui” - disse pressionando meu peito. “Você tem o coração bom. Não deixe que isso suma”. Obviamente, eu fiquei sem reação. Respondi com um aceno constrangido enquanto ela voltava ao trabalho.

E ali estava eu, algum tempo depois, observando aquela boca cor de cereja balbuciando algo que eu não conseguia entender. Segundo ela, eu jamais poderia sonhar com aquilo. Que ela tinha nojo do meu sobrepeso. Que nunca ficaria com alguém como eu. E, jovem como era, cometi o erro de não ter dito nada. Voltei para casa e fui deitar. Naquela noite eu não chorei, não falei nada. Eu sumi dentro de mim mesmo, com raiva de ser como eu era. E questionei aquela senhora da empresa em meus pensamentos: de que adiantava ter um coração bom?

E lá estava eu, anos depois, preparando-me para começar a aula. Seria a minha primeira em uma universidade. Abri a sala, montei meu computador, liguei o projetor. Um a um, chegavam os alunos e se ajeitavam em suas carteiras. O que pensariam de mim? Iriam gostar? Eu seria útil? São tantas as perguntas que passam pela cabeça da gente nesse primeiro momento. Mas respirei fundo e coloquei o primeiro slide na tela. E naqueles poucos segundos entre o meu dedo apertando a tecla e o meu “Boa tarde”, o mundo parou. Eu lembrei novamente da senhora da empresa me dizendo aquelas palavras. E me questionei se realmente eram verdadeiras. Uma parte de mim estava destruída por um relacionamento mal acabado, mas eu carregava a responsabilidade pela qual havia lutado quinze anos da minha vida: ser professor. Por fim, abri a boca e o tempo voltou a correr.

E lá estava eu, tentando explicar para ela que não, que ter ouvido esse “coração bom” não significava nada de concreto. Que por mais que eu “pudesse ter”, ele não me adiantava nada: eu ia perdendo tudo o que tentava amar. E então ela me disse que eu deveria parar de buscar lógica em algumas coisas, que as pessoas são indivíduos únicos. Mas ela não era capaz de entender a solidão que eu carregava dentro de mim, o desejo de não ser bom em troca de ser feliz. E ela explicou sobre Lacan, Freud, sei lá. E eu a ouvi com aquela cena do café na minha mente. E apenas consegui sentir vergonha de ter esse “coração bom”. Ele nunca serviu para nada, eu repeti.

E aqui estou eu, lembrando da entrevista de Foucault, pensando que eu só escreveria o livro se no final conseguisse perder o coração.

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