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Alguns fluidos minutos de sua paciência

Gostaria que você tivesse paciência hoje, que respirasse fundo e me desse uma chance para explicar uma sucessão de erros. Sei que sempre pude contar com você e, na minha esperança, ainda estará aí quando chegar à linha final.

                Eu adoro canetas. Mesmo a minha letra sendo bem ruim. Não que ela sempre tenha sido assim, mas, de incontáveis anos pra cá, ela é quase ininteligível até mesmo para mim. Eu escrevo tudo torto no papel. Meu “m” e “n” são praticamente um risco só. E eu como letras como se fossem cereais com leite. Espero, de verdade, que as minhas anotações pessoais e cartas jamais tenham importância no futuro, pois sinto pena do paleógrafo que teria essa hercúlea tarefa.

Quando criança, minha letra era minúscula e deitada para a direita. Mais de uma vez, as professoras brigaram comigo, dizendo que era difícil enxergar. Sempre tive a mão pesada para escrever, e meus cadernos eram quase todos repletos de vestígios decalcados. Mas eu gostava, mesmo, era da sensação da tinta deslizando sobre a folha lisinha, meu pulso sendo levado até o fim da página, parando, retrocedendo ao começo da outra, e continuando: eu me sentia uma máquina de escrever igual a que herdei de um falecido tio e guardo até hoje. Na prova, enchia a folha de almaço com minha caligrafia microscópica e, milagre, tirava notas boas, apesar das reclamações das professoras (que usassem óculos, ora! Não era problema meu). Na adolescência, minha letra foi mudando. De cursiva, passou para caracteres puramente feitos em forma. Era diferente? Sim. Mas, com isso, eu ganhava velocidade escrevendo. E foi aí que as coisas começaram a dar errado, acho.

Nessa época, descobri-me bakunista e, mais grave ainda, apaixonado por poesia revolucionária. Não contente em ler, escondia na contracapa de meus cadernos pequenos poemas autorais. Eu era jovem, você sabe: ainda acreditava que o mundo mudaria, que talvez eu pudesse auxiliar nisso, essas coisas pelas quais todos passam. E foi nesse momento que encontrei a grande válvula de escape da minha vida: escrever. Não me orgulho disso. Não sou um bom escritor, nem pretendo me profissionalizar. Mas nos momentos de angústia ou felicidade, eu me pego escrevendo. Bom... mais nos momentos difíceis, é claro. Eu me recordo de guardar meus textos como arquivos no computador desde 2000. E, até hoje, tenho todos organizados por anos. Às vezes, gosto de pandorar e me arrisco a abrir essa pasta chamada “Textos Meus”. Ali, vejo minha trajetória pessoal: é incrível, mas eu me lembro de cada coisa que sentia ao escrevê-los. Todos tiveram um motivo de existir. E muitos foram digitados a partir de originais escritos à caneta em cadernos ou guardanapos.

Ah, sim. Vamos voltar a ela. A caneta. Se não me falha a memória, ganhei minha primeira caneta-tinteiro em 2003 ou 2004. Presente de meu pai. E ele, infelizmente, iria se arrepender disso pouco tempo depois.

Eu havia passado os últimos anos me desgastando para entrar na universidade. Meus pais jamais teriam condições de pagar meus estudos e, por isso, ou eu passava em algo público, ou não estudaria. E, desgraça! eu gosto de aprender... Então passei quase dois anos dedicando dezesseis ou dezoito horas dos meus dias aos estudos. No fim, fui aprovado no vestibular que tanto queria. Mas paguei um preço muito alto: minha cabeça não estava pronta para me esforçar ainda mais. O resultado é que logo me afundei em uma depressão que me pareceu eterna. Somado a isso, um relacionamento bastante ruim, que acabou de forma muito estúpida. Eu desmoronei. Em 2005 – e digo isso sem vergonha alguma do meu passado – tentei me suicidar. Lembro vagamente do dia, da sucessão de acontecimentos, do choro de minha mãe, do desespero de meu pai, da vergonha e dor que eu sentia de mim mesmo, dos socorristas entrando em casa, de eu sendo levado na maca enquanto alimentava a curiosidade do condomínio todo, e lembro da minha caneta-tinteiro jogada ao pé de minha cama – cheia de sangue.

Passei dias internado. Tive alta. Voltei para casa. Encontrei minha caneta e a joguei fora. Eu não queria, nunca mais, voltar a escrever.

Mas a vida é engraçada, você sabe. A gente pode até não querer, mas o vício é mais forte... Depois de muito tempo, eu me peguei rabiscando durante uma das aulas na universidade após um período de afastamento médico de seis meses. Eu não sei bem o que pensei na hora, apenas comecei a escrever. Quando percebi o meu erro, joguei a folha fora. E a vida seguiu até o momento em que cometi outro “erro”: voltei a escrever por causa de uma moça. Coloquei esse “erro” entre aspas porque não o considero assim, e ele me traz um leve sorriso ao canto da boca toda vez que lembro. Essa bonita moça havia conquistado meu coração, mas ela não sabia disso (e essa é uma falha de caráter minha: sou péssimo em demonstrar sentimentos). Eu fiquei semanas pensando no que fazer, no que dizer... Aí apelei para a única coisa que eu sabia que poderia ter alguma chance: escrever. Naquela noite, voltando da universidade, fiz praticamente um poema épico sobre ela, contando sobre suas características, sua beleza, seu jeito que me fazia bem. Imprimi e entreguei no dia seguinte ao nos despedirmos. Alguns dias se passaram, acho. Mas, para minha surpresa e alegria, havia dado certo! Consegui demonstrar, escrevendo, o que era incapaz agindo. O resto é outra história... Uma história que foi muito boa enquanto durou. Descobri, nessa época, que eu adorava torná-la minhas páginas: pegava a caneta e rabiscava palavras de amor na pele daquela moça. E esse vício, (in)felizmente, nunca deixou de me acompanhar.

Desde então, não deixei mais a caneta de lado. Somente dei um uso mais específico para ela. Hoje já não escrevo mais meus textos e depois os digito: estou velho, minhas mãos doem. Faço tudo diretamente no computador. Contudo, faço questão de que, os textos mais importantes para mim, sejam, sim, escritos a mão. Geralmente, são bilhetes curtos, que mando para as pessoas merecedoras de minha letra ininteligível. Mas faço com a melhor das intenções, juro.

Hoje, por falta de uma, tenho duas canetas-tinteiro, que uso para rabiscar papéis quando estou tendo de pensar em alguma coisa. Elas têm um significado muito específico para mim, rememorando um período de dor, mas, também, apontando para alguma esperança. Ultimamente já não as uso para escrever bilhetes, mas gostaria que, um dia, no fim da solidão que as palavras criaram em mim, elas encontrem alguém que me desperte novamente a vontade de rabiscar.

Espero que você tenha ficado aqui até agora. Eu nunca sei quando meu texto será o último, mas, caso seja este, que sirva para lembrar você de que o mundo talvez precise usar mais tinta, de que as pessoas possam dizer às outras, mesmo que por cursiva, o quão especiais elas são. E se este for, de fato, o último, que você seja o que sempre foi: seja incrível.

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