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Sundae

Quando criança, a gente ia na vó quase todo fim de semana. Era sempre uma alegria. Via meus primos e primas. Brincava na rua. Voltava esfolado de ralar o dedo no asfalto jogando bola. Tomava o chá mate mais quente da face da Terra (até hoje não sei como a vó conseguia esquentar tanto aquilo). Comia bolo batido a mão, já que ela não gostava de batedeira. E, quando noitinha, vinha dormindo no carro do pai até chegar em casa. Geralmente isso acontecia aos domingos. Era algo bom. Sinto falta disso às vezes... Falta dessa sensação de apenas viver com a única responsabilidade de ter de ir para a escola. Mas isso é inevitável eu acho. Envelhecer, digo. Ficar velho é inevitável e o tempo, e as obrigações, chegam a todos.

            Acho que não lembro da figura de meus pais mais jovens. Tenho a imagem deles sempre velhos em minha cabeça. A maior parte dessas imagens, eu não consigo desvencilhar de algumas idas a hospitais. Vi o pai e a mãe usando aquelas camisolas de pessoas doentes mais vezes do que gostaria. Eu confesso que tenho um pouco de inveja dos amigos cujo os pais estão sempre bem de saúde: deve ser libertador você sair de casa por um tempo sem se preocupar com o fato de, a qualquer momento, receber uma ligação ou mensagem dizendo que alguma coisa ruim aconteceu. Mas isso também faz parte da vida, creio. A gente não escolhe essas coisas. Elas acontecem e ponto. E ninguém vai ter dó de você ou de quem você está ajudando no momento: as pessoas, cada uma, têm suas próprias preocupações, seus tormentos diários, seus momentos em que, talvez, apenas terapeutas, algum dia, saibam o que aconteceu. Tudo bem. É assim.

            Porém, coisas felizes acontecem entre o nascer e o partir. Coisas realmente boas. Aqueles momentos em que você para pra pensar que a vida deve ser muito mais do que trabalhar, envelhecer e morrer. E a lembrança disso vem do meu avô. Uma vez ele contou uma história pra mim que nunca esqueci. Era um fim de tarde chuvoso na casa da vó. Aquele dia, somente nós estávamos lá, sem primos ou tias. Eu estava vendo futebol com o vô na T.V. do quarto grande que ele dividia com minha vó. Nosso time, pra variar, perdeu. Eu estava meio chateado com essa situação (era criança, ligava para essas coisas ainda). Fiquei emburrado no canto do quarto, sentado na poltrona encostada à cama, lendo o gibi de ninjas que tanto gostava. O vô assistia à entrevista dos jogadores perdedores enquanto tomava seu café puro. Desligou o televisor e veio sentar perto de mim. O vô olhou para a capa da minha revistinha e deu uma risada baixinha. Eu perguntei o que era. Ele riu e disse que as máscaras cobrindo o rosto das personagens parecia com uma vez que ele teve de ser assim. Eu não acreditei! “Vô, o senhor foi um ninja?!” – perguntei com os olhos brilhando.  Ele disse que mais ou menos: houve uma vez, há muito tempo, em que todo mundo teve de ser ninja. Havia um vírus, uma gripe, que matou milhares de pessoas no mundo todo. Eu lembrava de ter estudado isso na escola, mas parecia algo tão distante que jamais pensei que o vô tivesse passado por isso. Mas a verdade é que ele havia sobrevivido a essa pandemia global. Eu perguntei ao vô como era ser ninja nessa época. Ele disse que todo mundo tinha de viver longe um do outro. O simples fato de falar podia transmitir o vírus. Tocar alguém? Impossível. O vírus também era transmitido pela superfície contaminada. Foram anos difíceis, segundo o vô. Parecia coisa de filme, segundo ele. E o vô continuou contando como ele teve de trabalhar de casa na época, dando aula pela internet, e como isso era cruel, porque o vô sempre amou ser professor, e ficar longe dos alunos era doloroso. E ele continuou respondendo minhas perguntas até uma hora que a vó entrou no quarto trazendo um lanche pra gente.

            “Foi também durante essa época que conheci sua vó” - meu avô disse. “A mulher mais linda que já existiu”.  E a vó deu um tapinha no ombro do vô, balançando a cabeça negativamente, tímida, antes de sair do quarto. O vô esperou ela ir embora antes de retomar o assunto. Eu apenas comia e o escutava. “Eu lembro de algumas coisas porque faz bastante tempo... Encontrei sua vó com medo. Ela também estava. Todos estavam. Você não sabia onde o vírus ficava, e a gente andava pelas ruas meio que desviando das outras pessoas. Mas eu precisava falar com sua vó: eu ainda não a havia visto pessoalmente, sabe? O medo de ser contaminado era enorme. Mas depois de tanto tempo preso em casa, a gente vai mudando a cabeça para não ficar louco, e passa a pensar em possibilidades seguras (ou mais seguras possíveis). Aí eu tomei coragem, botei minha máscara, coloquei meu pote de álcool em gel no bolso, e saí de casa. Ela fez o mesmo. A gente se encontrou numa tarde que estava bastante quente. O chão refletia o sol e ardia os olhos. Mas quando cheguei, vi sua vó parada ali perto do prédio, meio longe das pessoas que passavam nas ruas. Não se engane com os fios de cabelo brancos dela hoje: na época, eles eram da cor do cobre. E acredito que, talvez, fossem feitos de cobre de verdade, porque sua vó irradiava eletricidade, era difícil ficar quieto perto dela. Ela estava com uma calça preta e uma blusa meio bege, acho. E a máscara branca. A minha era preta. Na verdade... Eu estava com camisa preta também. Sabe, não é inteligente andar com roupa preta debaixo do sol: não faça isso. Mas voltando a sua vó: fomos almoçar em um restaurante mais vazio daquela região. Sentamos na mesa mais distante, com receio de contaminação. Passamos álcool em tudo. E só tiramos as máscaras quando a comida chegou. Foi cruel demais ficar tanto tempo esperando a comida chegar para poder ver sua vó sem a máscara, ver o rosto dela por inteiro, a beleza dela por inteiro. Mas deu certo: estávamos com fome e foi muito bom reparar nos detalhes do rosto da sua vó sem nenhum impedimento. Tomamos nosso vinho. Comemos nossa comida. Mas o principal veio depois: a sobremesa. Sua vó sempre brigou comigo por causa do açúcar: eu adoro doces. Naquele dia ela hesitou, mas consegui convencê-la a pedir sundae. Ela escolheu um de chocolate. Eu também pedi um. E nós ficamos ali comendo, conversando e rindo. E eu só torcia para que ela demorasse todo o tempo do mundo para terminar de comer, porque uma parte de mim estava com receio de que fosse embora após o almoço”.

            “Por fim, finalizamos e saímos do restaurante” - meu vô continuou. “Existia, naquela época, uma pracinha cheia de árvores e uma igreja bem ali em frente ao restaurante. Sua vó perguntou se eu queria me sentar um pouco. Procuramos o banquinho mais debaixo das sombras e nos acomodamos lá. Para a minha felicidade, os bancos daquela praça eram minúsculos, e sentar duas pessoas era praticamente sentar-se encostado. Ficamos ali, eu à esquerda, ela à direita. Estávamos novamente usando máscaras e começamos a conversar sobre a vida, sabe? Coisas do dia a dia, sobre a dificuldade daqueles tempos pandêmicos. O banco era, como disse, apertado, e meu braço estava empurrando um pouco sua vó. Pedi a ela se podia passar o braço por trás dela para ficar mais confortável. Ela deixou. E depois de mais um tempo conversando, sua vó encostou a cabeça em meu peito. Aconcheguei minha mão direita no ombro dela, e ali ficamos um tempinho quietos. Pela máscara, conseguia sentir um pouco do perfume dos cabelos cobreados de sua vó. Eu estava bastante ansioso, e perguntei se sua vó queria sentir meu coração... Sei que parece bobo hoje em dia, mas foi a desculpa que encontrei para poder tocar a mão da sua vó. Ela aceitou o convite e ficou um tempo com a mão em meu peito, e aquilo foi algo maravilhoso. Eu beijei a testa dela. Com máscara... Não ria! Foi embaraçoso. Senti o sabor do alvejante que a gente usava para limpar os tecidos. Depois disso, ficamos de mãos dadas. As delicadas e pequeninas mãos de sua vó. Tão quentinhas. E continuamos a conversar enquanto ficamos assim. Fui tomando mais coragem e perguntei se podia tocar o rosto dela. Sobre a máscara mesmo. Ela disse que sim: foi a primeira vez que senti a face de sua vó: ela toda encostada na palma da minha mão. Foi inacreditável. Por fim, tive de apostar tudo na grande pergunta: ‘Posso beijar você?’. Ela fez que sim com a cabeça e tiramos as máscaras. Vi os lábios lindos de sua vó se aproximando de mim antes de fechar os olhos e não enxergar mais nada. Nesses momentos, um dia você saberá, o tempo para, tudo congela. Você apenas sente a boca da outra pessoa e quer ficar ali pra sempre. Toquei o rosto de sua vó, segurei ele na minha mão e beijei com mais vontade. Senti o sabor de sundae vindo dela. Foi uma sensação que nunca esqueci, sabe? Sua vó era simplesmente perfeita (e, até hoje, tem um beijo fantástico). Quando terminamos de nos beijar, afastei meus lábios e abri os olhos: ela ainda estava com os dela fechados, respirando baixinho. Pedi a ela para abrir os olhos, porque queria ver de perto como eram. Ela abriu. E ali, naquele instante, as árvores da praça ficaram mais verdes, e a grama do jardim da praça ficou mais verde. Os olhos esverdeados dela eram bárbaros. E a luz do dia me permitiu ver meu reflexo neles. Senti como se habitasse a alma da sua vó. Ficamos um tempo assim. Depois, ela me abraçou, encaixando sua cabeça entre meu pescoço e acariciou minha orelha. Eu lambi de leve meus lábios e senti mais uma vez o sabor do sundae. Passei o dedo pela boca dela e recebi um beijo na palma da minha mão. Aquele dia... Aquele dia eu nunca esqueci” - meu vô disse com os olhos marejados.

            Hoje já estou velho e penso sempre nessa história do vô. Como as lembranças ficam marcadas por causa de sabores. Eu tenho o gosto do chá mate que minha vó me servia até hoje em minha lembrança. E meu vô, o gosto do sorvete que ele tomou com minha avó naquela tarde quente dos anos mais difíceis de suas vidas.


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