Pular para o conteúdo principal

Vermelho Açafrão

 

O martelar das horas era inexorável: tudo ali passava no menor tempo possível, como um pássaro pulando pelo chão ao invés de voar. As unhas pretas batiam na caneca de alumínio com café em um ritmo descompassado – um alerta para que ela se mantivesse acordada no marasmo da tarde. A tela do computador irradiava o seu brilho pálido, mesclando-se com sua pele que não via a praia há muito tempo. Havia números ali pululando: uma quase infinita ordem que regia o mundo financeiro. Um dia quiçá ela seria psicóloga, mas, por enquanto, contadora trazia o pagamento no início de cada mês.

            A hipnose do meio da tarde sempre vinha. Era inevitável. A mente dela deixava o corpo e seguia outro rumo. Mais bonito? Talvez. Interessante? Certamente. Nesses momentos, as dores do passado cessavam: não havia mais agulhas, cortes, mesas geladas... Tudo ali era acolhedor, e as memórias do passado – as boas memórias – povoavam a paisagem repleta de gatos, doces e salgados. Sua mãe estava ali também. Linda. E ela sempre sorria e dizia que estava bem. Esses momentos acalmavam o coração dela e faziam as horas correrem. Ela ficava ali abraçada, sentindo o perfume bom da mãe, e dizendo o quanto a amava.

            Ela então despertava e apoiava o rosto na mão: faltava pouco para dar o horário do trabalho. Ela ia sair, chegar em casa e relaxar. Em seu lar, iria se despir: veria o reflexo no espelho e, ali, enxergaria a mulher linda que era. Não importava que algumas pessoas tivessem deixado de elogiar, isso era o de menos, e isso não a tornava menos atraente. Seus cabelos cacheados roçavam seus seios e, ali parada, se equiparava a um Botticelli, a um fotograma de Terrence Malick: belo, vívido. A cicatriz em seu ventre era a marca de que vencera a morte uma vez: tinha orgulho de mostrar ao mundo que era ela quem mandava em seu destino. Também havia marcas em outras partes de seu corpo: algumas, ocasionadas pelo gato brigão; outras, pela tinta da agulha que transforma sonhos em Arte. Após enxergar-se maravilhosa, ela entrava debaixo do chuveiro e deixava a água acariciar seu corpo. As gotas escorriam pelos cabelos e tocavam a face, indo ao encontro de seus lábios chamativos – a água beijava sua boca e mostrava quão saborosa ela era.

            Terminado o banho, começava o ritual da noite, passando óleos perfumados no corpo: para cada dia, um aroma diferente. Ela era uma mulher com cheiro de avelã hoje. E passou todos os hidratantes necessários para sempre se sentir a mulher mais linda existente. Por fim, antes de encerrar o dia e dormir, ela tomava o seu chá preparado com as folhas naturais. Era uma delícia. Seus lábios assopravam delicadamente o líquido quente, fazendo o vapor formar uma cortina que desvendava aquele ser belo a cada gole. Deixava, então a xícara de lado e deitava-se. De lado. Sempre. E punha-se a sonhar. Com o que? Não sabemos. Mas toda a luz da lua que entrava no quarto durante a noite podia ver aquela cena: ela, linda, deitada com os cabelos de açafrão cobrindo-lhe o rosto.

Debaixo deles, um leve sorriso.

Postagens mais visitadas deste blog

Caveira safada

Era aquela maldita caveira novamente.               - Ei, puto, chegue cá!             E ela veio, meio cambaleante, com seu ritmado compasso de fêmur. Caveira mexicana. Sorria com os amarelados-pontos-temerosos-de-dentistas. Trazia um charuto entre os finos dedos da ossatura direita.               - Mas o que faz aqui novamente, peste?               - Sabe como é, caveirando... Invejando os que têm carne.             - Porra, esse povo deve tomar um susto, hein!             - Nem me fale. Não sei porque tanto medo. Uma caveirinha tão simpática como eu.             Coçou as costelas.             - O que é isso aí?             - Isso o que?             - Preso aí, velho.             - Presente para usted.             E retirou uma grande garrafa de rum.             - Conseguiu onde?             - Dei sorte. Geralmente nessa época, só encontro aguardente sem graça. Isso eu roubei de macumba de rico.             Ele cuspiu.             - Cacete, macumba?!

A filha

Quando a mana foi embora, pai pareceu ressentido. Talvez por ser filha mulher, ter crescido agarrada a ele. O laço entre eles se intensificou depois que a mãe morreu. Eu sempre fui quieto, sem saber demonstrar direito o que sinto. A mana, ao contrário, era luz: acordava e dava bom dia, gostava de abraçar, ria à toa. Ela alegrava a casa. Por ser mais velha, chegou aquele momento na vida em que foi atrás dos sonhos. Passou em uma universidade longe e foi morar lá. O pai sabia que era para o bem dela, que ela devia lutar por uma vida melhor. Ele entendeu, mas se entristeceu. O tempo foi passando e ela só conseguia nos visitar por algumas poucas semanas durante o ano. Isso não diminuiu a dor do pai. Mas ele entendia, e nunca chorava na frente dela durante as despedidas.      Certo dia, acordei mais cedo que o normal e peguei o pai escutando as modas em seu radinho de pilha enquanto via os antigos álbuns de fotos que guardava no fundo da estante. Pareceu não perceber minha presença, e con

Um dia de campo

Tive um excelente professor de fotografia na pós. Ele era especializado em fotojornalismo, havia viajado o mundo, suas fotos eram impecáveis. Em suas aulas, analisávamos os fotógrafos mais famosos e me lembro muito bem de ele dizendo, sobre Cartier-Bresson, que aquele francês tinha “olhar fotográfico”, que não importava a máquina que carregava em mãos, ele conseguia, em um instante, congelar no tempo uma poesia. Sabia o exato momento em que devia pressionar o obturador. Eu tive um excelente professor de fotografia na pós. Mas nunca aprendi nada com as aulas.            Posso ter tido o conhecimento básico de como operar uma câmera, regular a abertura, a exposição, a luz. A fotografia, afinal, é a manipulação do tempo, deixando nele um registro. Mas isso não é o suficiente. Não, não. É necessário bressonizar, ter o tal do “olhar fotográfico”, saber o que enquadrar e quando apertar o botão. Não sou bom nisso, mas guardo na memória as ações e sensações por trás do ato de se empunhar uma