Pular para o conteúdo principal

Os olhos de meu pai

 

    Não. Eu não sou pai. Não pretendo ser. Mas iria amar a criança caso fosse. Talvez isso até me fizesse bem, sabe? “Papai, papai” – e eu olharia pra baixo e veria aquele pedacinho da minha vida sorrindo pra mim. Talvez minha cabeça estragada melhorasse com isso. Ou talvez não. Não tenho planos de algum dia saber. Felizmente, as mulheres que passaram pela minha vida também não pretendiam ter rebentos. “Nada contra” – diziam – “mas não é pra mim”. Eu entendia. E sorria. Porque isso me tranquilizava. Mas se acontecesse, eu iria marcar na pele no nome da criança, assim criaria vergonha na cara e seria uma pessoa melhor. E iria querer sentir ela chutando na barriga da mãe. E a mãe seria a mulher mais linda do mundo pra mim. E eu acordaria desse sonho e veria que não presto para me relacionar por muito tempo, então o risco de me tornar pai está atrelado puramente ao tesão, ao látex falho, às situações terceirizadas e provavelmente irracionais.

            Mas se eu fosse, iria ser como o meu pai. Ele pode não ter tido muito estudo, pode ter começado a trabalhar quando criança e terminado apenas com idade avançada, mas ele é um Pai, com P maiúsculo mesmo. Nunca faltou nada em casa. Muito menos amor. E a culpa de eu ser como sou é somente minha, não da minha família. Eles me ensinaram a amar, mas eu nunca soube demonstrar. Tenho essa incapacidade, sabe? Não sei falar “Eu te amo”... Minto, eu lembro de apenas uma vez ter falado isso ao meu pai: eu tinha acabado de sair do hospital. Havia tentado me matar e estava em casa me recuperando e tomando remédios que nem me lembro mais. E eles me deixavam num estado de sonho contínuo. Mas eu lembro que havia dias em que eu pegava o telefone e ligava para alguns amigos e terminava dizendo: ”Eu te amo”. E fiz isso algumas vezes com meu pai ao telefone também, quando ele estava no trabalho. A verdade é que, depois que esses remédios saíram da minha vida, eu nunca mais fui capaz de dizer isso a ele. Nem a ninguém. Família ou amigos. Eu quero muito acreditar que eles sabem disso. Que eu consigo demonstrar de algum outro modo, talvez por gestos. Assim como eu tive de aprender a chorar, talvez tenha de aprender a dizer que amo. Eu disse isso para algumas das mulheres que não queriam ser mães, mas isso não foi suficiente para prendê-las. E a culpa, hoje eu sei, foi toda minha. Mas isso é outra história. Outro tormento.

            Eu só vi meu pai chorar uma vez na vida. Quando o irmão morreu. E acho que nunca vou esquecer isso. É difícil chorar na frente dos outros. É preciso muita dor, ou muita força. Talvez ele tenha chorado quando nasci. Ou tenha se segurado. Ele é de outra geração, em que os homens eram criados para não sentirem nada, apenas serem fortes. Mas hoje entendo que ser forte é sentir. Porque não é fácil ter o mundo desmoronando ao seu lado e você seguir em frente. E quando isso acontece, se você chorar não irá resolver os problemas, mas vai aliviar um pouco a sua dor e lhe fazer respirar e manter as forças. Lembro de uma vez que uma colega tinha terminado um relacionamento e veio falar comigo: eu sou péssimo para dar conselhos nessas horas (por favor, nunca me peçam). Eu só disse: “Chore”. Talvez tenha sido cretino de minha parte, mas só consegui pensar nisso. E acho que eu choraria se fosse pai. Choraria porque ficaria assustado em ter de carregar uma vida diferente ao meu lado para sempre. Choraria porque, mesmo não entendendo nada de genética, acreditaria que coisas ruins que me habitam passariam para a criança e ela correria o risco de ser como eu. Talvez as coisas boas também passariam, mas as ruins machucam tanto... E pai nenhum quer ver o filho sofrer. De modo algum. Eu acho.

            Tenho dificuldades em olhar as pessoas nos olhos. Eu converso olhando para qualquer outro canto. Mas nos momentos em que passei por dificuldades ou adentrei coisas boas, olhei por frações de segundos os olhos do meu pai e neles vi amor e orgulho. E recentemente nasceu a filha de um amigo meu, sabe? E isso me fez pensar novamente que eu também seria capaz de amar um serzinho pequeno e frágil, mas que não tenho pretensão a isso. E reparei bem nos olhos do meu amigo quando fui visitar a menina pela primeira vez: eles também estavam carregados de amor e orgulho. Não poderia ser diferente, acho. Ele é pai.

Postagens mais visitadas deste blog

Caveira safada

Era aquela maldita caveira novamente.               - Ei, puto, chegue cá!             E ela veio, meio cambaleante, com seu ritmado compasso de fêmur. Caveira mexicana. Sorria com os amarelados-pontos-temerosos-de-dentistas. Trazia um charuto entre os finos dedos da ossatura direita.               - Mas o que faz aqui novamente, peste?               - Sabe como é, caveirando... Invejando os que têm carne.             - Porra, esse povo deve tomar um susto, hein!             - Nem me fale. Não sei porque tanto medo. Uma caveirinha tão simpática como eu.             Coçou as costelas.             - O que é isso aí?             - Isso o que?             - Preso aí, velho.             - Presente para usted.             E retirou uma grande garrafa de rum.             - Conseguiu onde?             - Dei sorte. Geralmente nessa época, só encontro aguardente sem graça. Isso eu roubei de macumba de rico.             Ele cuspiu.             - Cacete, macumba?!

A filha

Quando a mana foi embora, pai pareceu ressentido. Talvez por ser filha mulher, ter crescido agarrada a ele. O laço entre eles se intensificou depois que a mãe morreu. Eu sempre fui quieto, sem saber demonstrar direito o que sinto. A mana, ao contrário, era luz: acordava e dava bom dia, gostava de abraçar, ria à toa. Ela alegrava a casa. Por ser mais velha, chegou aquele momento na vida em que foi atrás dos sonhos. Passou em uma universidade longe e foi morar lá. O pai sabia que era para o bem dela, que ela devia lutar por uma vida melhor. Ele entendeu, mas se entristeceu. O tempo foi passando e ela só conseguia nos visitar por algumas poucas semanas durante o ano. Isso não diminuiu a dor do pai. Mas ele entendia, e nunca chorava na frente dela durante as despedidas.      Certo dia, acordei mais cedo que o normal e peguei o pai escutando as modas em seu radinho de pilha enquanto via os antigos álbuns de fotos que guardava no fundo da estante. Pareceu não perceber minha presença, e con

Um dia de campo

Tive um excelente professor de fotografia na pós. Ele era especializado em fotojornalismo, havia viajado o mundo, suas fotos eram impecáveis. Em suas aulas, analisávamos os fotógrafos mais famosos e me lembro muito bem de ele dizendo, sobre Cartier-Bresson, que aquele francês tinha “olhar fotográfico”, que não importava a máquina que carregava em mãos, ele conseguia, em um instante, congelar no tempo uma poesia. Sabia o exato momento em que devia pressionar o obturador. Eu tive um excelente professor de fotografia na pós. Mas nunca aprendi nada com as aulas.            Posso ter tido o conhecimento básico de como operar uma câmera, regular a abertura, a exposição, a luz. A fotografia, afinal, é a manipulação do tempo, deixando nele um registro. Mas isso não é o suficiente. Não, não. É necessário bressonizar, ter o tal do “olhar fotográfico”, saber o que enquadrar e quando apertar o botão. Não sou bom nisso, mas guardo na memória as ações e sensações por trás do ato de se empunhar uma