Dia 20 de Setembro de 2006.
Sou um monstro. Sim, sei que
sou. Sou um serzinho execrável. Sequer mereço que você leia o que está diante
de seus olhos: uma pessoa cruel não merece atenção.
Mas talvez eu não seja um
monstro. Não, talvez eu não seja. Sou um ser que obedece a ordens. Sequer tenho
o direito de me opor ao que me ditam: há algo maior do que mim.
Quarta-feira. Hoje. Dei meus
grandiosos cinqüenta passos até a escola na qual devo enfrentar 15 horas de
estágio para a disciplina POEB (Política e Organização da Educação Básica no
Brasil) da conceituadíssima Faculdade de Educação da magnânima e inigualável Universidade
de São Paulo: local onde apenas os melhores estudam, onde os intelectuais
praticam a doce arte da sapiência, onde os alunos capacitados passaram pelo
vestibular mais concorrido do país e asseguraram seu lugar numa sala de aula
bem distante das menores (e horríveis)
faculdades particulares. Somos deuses.
Apesar de também ser um Deus
por meritocracia, optei de ir à pé até a escola, debaixo de um tempo fechado,
com grandes possibilidades de chuva e de atropelamento pelos carros que não
respeitam a curva perigosa da rua donde emerge a escola. Escola Estadual Parque
Savoy City II; ensino fundamental ciclo I, Leste – 4. Era o horário de entrada
das crianças. Mas elas entram por um portão, deuses entram por um portãozinho
escondido e trancafiado. Driblei os buracos e os materiais de construção
espalhados pelo chão (a escola está em reformas) e adentrei o prédio. O
edifício é feito com milhares de tijolos avermelhados e possui dois andares. Ao
entrar na escola, dá-se de cara com o pátio. Um espaço que reflete o tamanho
reduzido da instituição: com longas mesas azuis para as crianças tomarem suas
merendas, com bebedouro de torneira, com a famosa (e saudosa) abertura num
canto do pátio para as “tias” distribuírem as refeições por entre muitos
berros.
Passado o pátio, entro no
prédio propriamente dito. A primeira porta à esquerda dá para a copa. A
segunda, na diretoria. Mais ao fim do corredor há a secretaria e a sala dos
professores, uma ao lado da outra. Entro na diretoria e não vejo ninguém
(mencionei que cheguei por volta das 13h10min?). Então vou até a secretaria e
pergunto para a senhora de lá onde eu conseguia a chave da Biblioteca, pois,
numa conversa tida semana passada, a coordenadora (chamada Jo) havia dito que o
molho encontrar-se-ia atrás da porta da diretoria. A mulher prontamente foi
buscar a chave, mas não a encontrou. Foi então que começou a procura pelo
objeto perdido. Uma mulher pergunta para a outra. Aproveito para sentar-me e
esperar, afinal, o tempo do estágio corre independentemente se eu estiver no
trabalho ou não. Dizem que a chave ficou com a moça responsável pela
biblioteca, a Rosilene, e que ela logo chegaria. Eis que ela, esbaforida,
aparece. Cumprimentamo-nos formalmente. Eu estampo um sorriso que dá cãibras e
sou todo simpatia. Subimos para a biblioteca, enquanto observo as acolhedoras
salas de aula que jazem no corredor. Um aspecto, nobre leitor, que sempre será
constatado em escolas públicas (e também nas particulares, embora não possa
afirmar): as bibliotecas são espaços alienígenas no prédio, mantidas a
cadeados. Rosilene liberta o objeto que me separa daquela sala, meu olhos
brilham: livros!
A biblioteca é pequena até,
mas bonita. É bem enfeitada com motivos infantis, e a luz que atravessa as
janelas na parte esquerda dá conta de uma razoável iluminação natural do
ambiente. As prateleiras com os livros para consulta dos alunos ficam próximas às
janelas. As mesas, duplas, com 6 cadeiras, ficam no centro da biblioteca. A
prateleira com os livros a serem consultados pelos professores (dicionários,
por exemplo) fica ao lado da porta. No fundo da sala encontram-se duas
mesinhas: uma contém a coleção Larousse e alguns livros que me surpreenderam (a
coleção dos pensadores, e, entre eles, Hegel! Se uma criança ler Hegel – e
entender – eu juro que engulo todos os botões deste teclado no qual digito
agora!); a outra mesa contém um boneco para estudo de anatomia e ciências, e
duas balancinhas com pesos ao lado. Do outro lado da sala, mais mesas; mas
essas continham pilhas de caixas com os recém-chegados livros didáticos do
Governo (esses livros que tiram o sono de nós, deuses).
Rosilene começou a me
mostrar o que eu já via. Passeei entre as prateleiras dos livros paradidáticos
(divididas em seções, por exemplo: Fábulas, Animais, Contos, História, Família
etc.) e numa das prateleiras eu parei: havia o “Contos do Andersen”, meu amado Hans
Christian Andersen, aquele que leio ainda hoje e que lerei para meus filhos e
os filhos de meus filhos! Rosilene me explicou a diferença entre livros
paradidáticos e didáticos: os primeiros são livros de contos e afins, os
segundos são livros de “conteúdo”, “matéria” (Português, Matemática, Ciências, Geografia...).
Aproveitei para folhear o livro didático que nosso excelentíssimo Governo envia
para as escolas. Não comentarei aqui.
Depois das prateleiras,
atentei-me para as paredes. E, juro!, foi a parte que mais me emocionei com
aquela biblioteca. Ela está rodeada de quadros! Não quadros quaisquer, mas,
sim, de réplicas de quadros em que sonho ter em casa (se minha família não
preferisse pendurar frutas ou cores bizarras pós-modernistas nas paredes da
minha sala). Os grandes mestres da pintura rodeiam a biblioteca: Monet,
Picasso, Botticelli, e, creiam-me, Vermeer! Quase tive um orgasmo quando vi a
“Moça com jarro d’água”! Aproveitei para conversar com Rosilene sobre esse
quadro e o pintor. Como adoro Vermeer!
Reparei que havia telas e
alguns daqueles suportes de telas que não sei o nome. Rosilene me explicou que
uma vez a professora de educação artística fez um trabalho com os alunos sobre
os mestres da pintura e que cada aluno pintou um quadrinho baseando-se no que
aprendera. Tive a honra de observar algumas amostras dos Vermeerzinhos da
escola: pinturas realmente bonitas (se levarmos em consideração que as aulas
ocorrem até a quarta série). Infelizmente, as tintas, os pincéis e as telas
estavam agora abandonados sobre uma estante, no canto da biblioteca. Nesse
momento eu quis chorar: adivinhe, caro leitor, sobre qual estante repousavam os
materiais de pintura! Sobre a estante da Música! Engoli o pranto, tranquei
minha lágrima que iria fugir e perguntei com voz sofrida o que era aquilo. Rosilene
disse-me que no passado a escola tinha atividades relacionadas à música, com
até mesmo a formação de uma tímida fanfarra. Ela abriu a estante e observei
chocalhos, pandeiros, tamborins, pratos, sinos, baquetas... tudo adaptado às
pequeninas mãozinhas das crianças. Instrumentos delicados, mas resistentes. E
agora eles estão trancados numa estante! A escola não tem mais o professor de
música. As crianças não têm mais a oportunidade de praticar a única língua
universal existente. Sem dúvida – e sem exageros que a escrita poética permite
– aquele canto da biblioteca foi-me muito doloroso, a parte mais triste de
minha observação, o que é a vida sem a Arte?
Notando meu silêncio,
Rosilene começou a falar sobre o funcionamento da biblioteca. Tal qual aquele
triste canto, a biblioteca se encontra num lamentável momento de ostracismo:
raramente os alunos pisam lá. E como todo ser humano que precisa duma razão
para seguir adiante, Rosilene retrocedeu: pôs-se a falar do passado, da época
boa. E para narrar-lhe isso preciso dedicar um parágrafo a essa figura chamada
Rosilene antes. Ei-o:
Rosilene é professora do
ensino fundamental. Começou a dar aulas em 1989. Ela e o marido são
professores. O marido dá aulas de alfabetização para adultos pelo EJA (Educação
de Jovens e Adultos). Rosilene começou a lecionar nessa escola em 2001, mas dá
aulas no CEU durante o período matutino também. Tem uma filha a qual conheci,
chamada Beatriz: uma menina linda, cabelos cacheados pintados de ouro e olhos
de esmeralda; Beatriz cursa a segunda série e pude conhecê-la durante o recreio
(por volta das 15 horas) quando sua mamãe-coruja fez questão de me apresentá-la
(o recreio ocorreu no pátio por três motivos: a) a escola está em reformas, é
perigoso sair; b) a merenda ocorre no pátio; c) chovia). Rosilene é uma delícia
de pessoa, em nenhum momento reclamou de me mostrar a escola e colaborou
deveras com meu estágio. À Rosilene devo grande parte do relatório que
entregarei para o Olímpio.
Mas, como eu dizia, ela
voltou-se para o passado e me contou sobre sua vida e sua profissão. Antes de
2005, Rosilene lecionava (todas as disciplinas), porém, devido a uma tendinite,
não pôde mais escrever na lousa e, desde então, cuida da biblioteca. Tudo me
leva a crer que Rosilene deva ter sido uma excelente professora. Ela é uma “das
minhas”, daquelas pessoas que não se contentam com o padrão e buscam a
criatividade dos demais. Adorei duas coisas que ela me contou acerca de
metodologia de trabalho. A primeira é que nas aulas dela os alunos não
precisavam pedir para ir ao banheiro. Segundo me disse: é impossível negar o
direito de ir ao banheiro, pois são coisas inerentes ao homem, parte de sua
natureza, então, para que levantar a mão, interromper a aula, apenas para ir ao
banheiro? Rosilene adotou o método de distribuir um caderno para um
representante dos meninos e um para o das meninas; nesse caderno, eram anotados
os nomes dos colegas que iam ao banheiro. Desse modo, Rosilene obtinha um
controle dos que saíam da sala, pois, se um aluno se demorasse em demasia,
podia procurar saber para onde fora e o que acontecera. Contou-me que os
resultados desse método foram muito positivos e que, com o passar do tempo, o
número de nomes nos cadernos diminuíram bastante, obtendo, então, maior
controle sobre a sala de aula. A segunda coisa que me falou foi, para mim,
muito interessante. Ela criou, dentro da sala, um “Cantinho da Amizade”, um
local que ficava lá no fundo. Cada aluno que terminava suas lições podia chamar
um outro colega (que também havia terminado as tarefas, obviamente) para ir
sentar-se no cantinho da amizade (composto por uma mesa e duas cadeiras): lá,
eles conversavam sossegadamente (desde que em voz baixa, para não atrapalhar os
demais alunos nem espalhar pela sala os “segredos” das conversas). Achei isso
muito bem pensado, pois não nega o caráter humano do aluno, não o “mumifica”.
Confesso que me encantei com Rosilene enquanto ela falava, pois Rosilene não
pertence de modo algum àquele estereótipo de “professora chata para crianças de
primeiras séries”, estereótipo que, admito, carreguei em minha mente até o
momento em que entrei hoje na escola. Mas é um estereótipo criado desde minha
infância, pois outras professoras contribuíram para o meu trauma com relação a
elas.
A “bibliotecária” me contou
ainda que utilizava muito a biblioteca quando dava aulas. Levava seus alunos lá
para que lessem o que bem entendessem e que, mesmo depois de afastada das
salas, ainda mantinha o carinho de organizar bem a biblioteca para as crianças.
Isso eu constatei, havia por lá uma espécie de apoio para livros (desses que os
religiosos apóiam seus manuais sagrados) e nele havia uma estampa da Branca de
Neve com os dizeres “Livro em Destaque”. Rosilene afirmou que nesse apoio
colocava os livros que achava mais relevantes de acordo com o tema do mês, por
exemplo, colocava livros sobre família durante a época do Dia dos Pais, livros
sobre cultura africana no mês da Abolição, e por aí vai. Além dos destaques,
Rosilene disse que adorava contar histórias (sendo professora desde 1989,
histórias lidas para contar é o que não faltam!) para os alunos quando iam na
biblioteca. Eles mesmos pediam para que contasse. Hoje a freqüência à
biblioteca é bem menor, Rosilene já não é mais indagada por olhares curiosos e
ouvidos atentos como outrora. Disse-me o motivo disso: vieram muitos
professores novos e poucos têm interesse em biblioteca, por isso, raramente
levam os alunos ao local (penso comigo, que belos professores são esses que não
visitam bibliotecas!). Ainda sobre essa questão, a mulher me falou que enviou
um projeto à Diretoria sobre o uso da biblioteca por alunos e professores,
nesse projeto havia uma maior interação entre os professores, a biblioteca e os
alunos; a biblioteca deixaria de ser um espaço reservado aos ácaros para se
tornar um local mais vívido. A Diretora da escola achou ótimo, porém, devido a
um acidente de carro, está de licença e o projeto acabou sofrendo entraves por
parte da Coordenadora, que é um tanto conservadora e acha que a biblioteca
serve apenas para consulta de livros destruídos pelo tempo. A Coordenadora
chegou até mesmo a proibir o conto de histórias e atividades extracurriculares
feitas por Rosilene. A própria “bibliotecária” afirmou que os demais
professores ficam com receio de você “invadir” as respectivas áreas de conhecimento
lecionadas por eles. Por isso o projeto de Rosilene não vingou. Por isso
Rosilene disse que se sente um tanto frustrada com o trabalho. E é por isso que
minha raiva só aumenta contra pessoas medíocres de mentes fechadas e
minúsculas, que não vêem que na Educação a interdisciplinaridade é essencial
para a formação de qualquer pessoa, e a interdisciplinaridade oferece um ensino
com mais prazer, que foge à regra de se copiar uma lousa inteira com bobagens.
Pude sentir na voz de Rosilene o desencanto. Também me entristeci, e perguntei
a ela se na carreira de professor só há tristezas. Para minha surpresa, os
olhos de Rosilene voltaram a brilhar e ouvi palavras lindas. Falou-me que se a
pessoa realmente tem vontade de ajudar os outros, então ela jamais vai se
cansar de ser professor; que dentro da sala de aula (desde que respeitando as
normas da escola em questão) o professor tem a tal da “liberdade cátedra”
(coisa assim), ou seja, ele pode propor a atividade que quiser para os alunos.
Isso me animou bastante, eu confesso. Tenho muitas idéias, espero conseguir
realizá-las, ao menos, grande parte.
Por ironia do Destino (ou
simplesmente porque Deus é um fanfarrão) logo depois do intervalo Rosilene
recebeu o comunicado da Coordenadora, no qual dizia que, devido às reformas da
escola, a biblioteca seria transferida para uma outra sala, assim que os
pedreiros terminassem a obra. E, antes de ser transferida, a biblioteca iria
servir como sala de aula para um professor! Agora, o mais absurdo: os livros
deviam ser encaixotados, mesmo com a biblioteca virando uma sala de aula
provisória. O paradoxo do cúmulo: os livros tinham de ficar no canto da
biblioteca, para que os alunos não mexessem neles! Custei para engolir essa
“piada”. Mas era verdade!
E foi então, ó leitor, que
passei de estagiário a estivador. Sabendo da tendinite de Rosilene, pus-me à
disposição, para ajudá-la no que fosse necessário durante o fim de tarde. Na
verdade, pouco fiz. Só retirei os quadros belíssimos da parede que receberia
uma lousa. E depois ajudei a encaixotar os livros mais antigos. Rosilene
advertiu-me, rindo, de que esse é o lado ruim do nosso trabalho (embora também
estivesse indignada com o fato da biblioteca ser inutilizada até o fim do ano –
prazo para o término da reforma da escola). Creio que meu estágio sobre a
Biblioteca tenha sido bem curto, afinal, estive presente em seu último dia
antes de entrar num coma induzido. Porém, como disse Rosilene, raras são as
escolas estaduais que possuam uma biblioteca, já que o Governo não obriga o
ensino estadual a ter um local específico para a utilização de livros (fato que
deixa ao deus-dará a existência ou não de uma biblioteca). Despedi-me de
Rosilene, agradecendo a atenção. Fui à diretoria assinar meu caderno de
estágio. Saí do prédio, sob chuva fraca.
Sou um monstro. Vou a um
lugar para estudar o uso da biblioteca e, no fim, acabo ajudando a empastelar o
meu objeto de análise. Quantos sentirão necessidade da biblioteca até o final
do ano? Os alunos que não: quase não freqüentam. Os professores? Talvez
consigam separar alguns livros para não terem de recorrer à biblioteca. O povo
do bairro, os pais das crianças que estudam? Eles tampouco devem ter tido uma
educação diferenciada da de seus filhos. Eu? Tenho a biblioteca dos deuses para
banquetear-me, embora fique mais revoltado do que triste com a situação da
biblioteca e do incentivo governamental. Rosilene? Ela é funcionária da escola,
logo lhe darão outra incumbência, mesmo que a afaste temporariamente do seu
sonho/projeto para o uso da biblioteca. Então, torno a perguntar: quantos
sentirão necessidade da biblioteca até o final do ano? E preciso ir ao mundo de
faz-de-conta para responder a isso: os livros, eles vão sentir falta, afinal,
ninguém gosta de ser desprezado.