Não era um dia incomum para
aquele homem parado na plataforma do metrô. Fazia isso seis vezes por semana. Os
vagões passavam sibilando enquanto via sua imagem perdida no vidro, aparecendo
e sumindo num compasso rápido. Pessoas o olhavam do lado de dentro e
desapareciam, na maioria dos casos, para sempre. Por mais que sempre chegasse à
estação na mesma hora, dificilmente conseguia identificar alguém conhecido, um
ser que se transportasse também dentro de um rito sagrado. Não. Uma vez até pensou
ter visto a loira da quarta-feira viajando no metrô da sexta, mas foi uma
ilusão.
DEPARTAMENTO
DE DEVANEIOS
A
Senhora J... apresentou queixa hoje, 8 de maio, sobre possível defeito na
comunicação entre a imagem de seu cérebro e o emissor da Avenida Axial B. A
causa da queixa foi o acidente envolvendo seu automóvel e um poste no final da
avenida. Relata que dirigia normalmente quando seu marido, falecido há 4 anos,
surgiu em seus pensamentos. A imagem pertence, conforme averiguado pelos
técnicos do Departamento de
Engenharia Pensamental, à pasta CC431, a
saber: uma discussão entre o casal que terminou com agressão do marido ao rosto
da esposa. Os técnicos afirmam, de acordo com relatório anexado, que o arquivo conflito
de casal (431) supostamente foi enviado
ao receptor da Avenida Axial B por erro humano: um estagiário ainda não
identificado. A Senhora J... então, apresenta a queixa e requer indenização no
montante de 2 (dois) devaneios sexuais, sendo 1 (hum) com o marido há 10 anos e
1 (hum) com o amante há 8 anos, e 3 (três) devaneios de tristeza, sendo 2
(dois) referentes ao funeral do marido e 1 (hum) ao término do relacionamento
com o amante. A queixa e a indenização fundamentam-se no fato de o emissor da
Avenida Axial B apenas poder emitir arquivos da pasta BC (Boas Coisas) e AnT (Atenção no Trânsito), conforme consta na Lei Federal de
Pensamentos.
DdD
8 de maio
A porta de sua casa era de um
marrom-mofado que lhe angustiava. Há muito tempo que a madeira estava
envelhecida. Ela passou de um marrom-marrom para um marrom-esverdeado e agora
era simplesmente marrom-mofado. Ele pensava, ao pôr a chave na fechadura, que
qualquer dia um musgo surgiria das fendas da madeira e alcançaria seus dedos,
penetrando sua pele e tornando-o também uma porta. Ficariam presos um ao outro
eternamente e seriam obrigados a ver rostos felizes, preocupados, esperançosos
e chorosos durante muitas gerações, a cada novo inquilino que chegasse à casa.
Talvez isso fosse bom. Porém, as dobradiças rangeram e o ar abafado dos cômodos
de janelas fechadas escapuliu rua afora.
Assistiu ao
noticiário. Assistiu à partida de futebol de seu time: perdeu com um gol
contra. Estava com muito sono para ir até o quarto. Acabou dormindo no sofá,
com o televisor ligado: o controle há muito estava quebrado e o ato de se
levantar para desligar o aparelho manualmente afugentaria o peso das pálpebras.
DEPARTAMENTO
DE DEVANEIOS
O Sr.
R... apresentou queixa hoje, 14 de junho, sobre a troca de uma pessoa em seu
devaneio no parque da Ala Norte. O plano de consumo de seus devaneios, de
acordo com o Pacote Plus, estabelece que os clientes recebam 7
(sete) devaneios gratuitos para serem usados em um período de 36 (trinta e
seis) horas oriundos de qualquer emissor da cidade. O querelante ainda
esclarece que pedirá junto ao Departamento Psicodevaneial um extrato de alívio para o erro ocorrido
hoje. Sua namorada foi trocada por homem desconhecido, “embora atraente” – nas
palavras do queixoso. O relato será encaminhado ao departamento competente.
DdD
14 de junho
Uma forte pontada dentro de sua
cabeça o fez quase perder o equilíbrio nas escadas que desciam para a estação
de metrô. Certificou-se de que seu celular estava dentro da capa protetora de
emissões. Fechou bem os olhos e forçou uma imagem preta em sua cabeça – técnica
que aprendera quando mais jovem. A dor e o susto foram sumindo aos poucos. Afrouxou
o nó da gravata e respirou fundo.
DEPARTAMENTO
DE DEVANEIOS
O
Sr. A... apresentou queixa hoje, 22 de setembro, sobre o excesso de magenta em
seu devaneio emitido no Centro Esportivo. Relata que seu aniversário de 7 anos
não poderia perder as cores com o passar do tempo uma vez que seu plano de
assinatura estipula o tratamento digital, com reescaneamento e backup anual de
todos os devaneios, do produto. É a segunda queixa que faz junto ao DdD em
menos de uma semana: a primeira, conforme consta no formulário de 18 de
setembro, foi sobre a coloração esverdeada do devaneio acima referido. A queixa
foi encaminhada ao Departamento
de Pinturas e Modelagens na mesma data. O
DPM respondeu no dia 19 de setembro que havia solucionado o problema. O
relatório técnico diz que o problema na coloração se deu a soldas frias nos
conectores de devaneios; soldas foram refeitas e as cores voltaram ao normal.
Contudo, o Sr. A... relata essa nova situação, que parece ter a mesma causa.
Assim sendo, o querelante solicita novo atendimento técnico, dessa vez, no
local. Ordem de serviço: ST034.
DdD
22 de setembro
A energia na rua havia acabado há
2 horas. O emissor do quarteirão estava temporariamente fora de serviço. Ele se
encontrava deitado, no escuro. Sentiu seus dedos tocarem uma pele e um corpo
quente apertando-se contra o seu. Ele estava de olhos fechados. Ainda sentia
tudo o que lhe fizera tão feliz quando chiados atravessaram as imagens: a
energia voltara e estavam religando o emissor lá fora. Ele se esforçou,
tentando agarrar-se à memória. Foi em vão: tudo se apagou.
DEPARTAMENTO DE DEVANEIOS
Eu, Sr. M..., subchefe do Departamento de Devaneios, apresento queixa na data de hoje, 11 de outubro, sobre a tela azul,
conhecida entre o meio técnico como erro fatal, ocorrida durante um devaneio no
dia 10 de outubro. É inadmissível que o Departamento de Cabeamentos não consiga reparar a rede de emissores sem
afetar seus clientes. Perdi meu devaneio referente à pasta PB008, arquivo
pessoal de nome doce_bj, no qual constava um dia em que, depois de anos de
desejo, aconteceu um beijo roubado por mim junto a uma mulher especial. Perdi o
arquivo modal no qual segurei o lado de sua face e a puxei, sentindo seus
lábios. Perdi, da mesma forma, o arquivo palatativo em que constava o sabor
avelã-gelado dos lábios dela. Por fim, perdi o arquivo sensorial em que o ritmo
do meu coração acelerou. Frente a todos esses problemas, requeiro a indenização
de 35 (trinta e cinco) devaneios, metade referente ao período imediatamente
anterior à data perdida, e metade ao período imediatamente posterior a mesma
data.
DdD
11
de outubro