Somente metade da faca aparecia para
meus olhos. O restante estava dentro da carne macia do grande cadáver suíno.
Seus olhinhos leitosos sem vida eram iguais às bolas de gude que jogávamos no
quintal de minha casa quando crianças. Meus primos e eu gastávamos longas
tardes debaixo do sol brincando com essas pérolas. Eu nunca fui muito bom e
sempre perdia. Também não entendia muito bem as regras do jogo, pois a cada dia
mudavam de acordo com o número de bolinhas de gude que meu primo mais velho tinha
em sua enferrujada lata de ferro. Isso gerava brigas também, e não foram poucos
os que voltaram para casa com um nariz sangrando ou uma orelha avermelhada.
Minha infância foi baseada em brincadeiras nos terrões daqui: jogava futebol
descalço para não estragar os sapatos novos presenteados por meu pai, nadava no
lago perto da casa da tia e escalava mangueiras para me lambuzar e ficar com
fiapos presos entre os dentes. Quando mais velho, voltava ao lago com o
interesse nas meninas que nadavam com pouca roupa. Elas riam, envergonhadas,
mas sei que gostavam de ser observadas. Uma delas me era especial. Era a única,
em toda a cidade, com olhos azuis e, para a minha sorte, não era uma prima.
Eu
roubei o gosto da manga da boca dela. Sim, respirei fundo e contei até mil
quando estávamos os dois quietos sob a sombra da mangueira. O calor nos deixava
desanimados e ela estava quietinha degustando a fruta que eu acabara de colher.
Devagar, fui chegando meu ombro mais próximo ao dela. Percebi que ela não se
incomodou, ao contrário das outras que me xingavam e iam embora. “Calor, não?”
– disse antes de espreguiçar e aproveitar o momento para esticar o braço no vão
que havia entre seu pescoço e a árvore. Isso me rendeu alguns arranhões na
pele, mas aguentei a dor porque aquela garota simplesmente havia me deixado
atuar de forma tão íntima. Ela aconchegou a cabeça no lado do meu peito e pude
sentir que ele batucava em sua nuca ligeiramente. Não falei nada: tampouco,
ela. Ficamos assim por longos minutos enquanto eu escutava seus dentes rompendo
as fibras da manga. O caroço voou para longe e ela se sentou corretamente,
liberando meu corpo da dormência que eu tentava apaziguar pensando em outras
coisas. Olhou pra mim sem saber o que fazer. Mas eu sabia: seus lábios estavam encerados
pela manga e não titubeei: segurei seus cabelos por trás e puxei sua cabeça em
direção à minha. Era a primeira vez que fazia isso e não tinha ideia de como
seria a sensação até prova-la. Foi esquisito. Apenas senti o gosto da fruta em
sua boca. Seus lábios tinham a mesma textura da manga: eram firmes e macios ao
mesmo tempo, mas possuíam um fator diferenciado: pulsavam, e percebi o seu
sangue os preenchendo. Foi um beijo mais longo, de experimentação, seguido por
mais um, curto, para selar o momento tão especial na minha vida. Abri meus
olhos e vi que ela ainda estava com os dela cerrados, de boca semiaberta, um
tanto cabisbaixa. “Tudo bem?” – perguntei. Ela levantou a cabeça com um sorriso
e apertou minha mão. Naquele instante eu sabia que havia encontrado a minha mulher, o meu amor.
Muitos
anos se passaram. E agora estamos todos reunidos, minha família e amigos, na
festa anual que fazem desde os tempos anteriores a meu avô. O sangue escorre
pelo pescoço do porco pendurado e cai na bacia. Vão usar isso para lavar a
terra, alimentar os minúsculos grãos acastanhados que servirão de abrigo às
plantações que se iniciam em breve. Vejo a faca descendo, rasgando sua barriga
e saindo vermelha como o batom que minha esposa usa em ocasiões especiais. Meus
primos, agora velhos, encarregam-se do ritual de morte. O cadáver é preparado,
lavado, temperado e espetado sobre o fogo. Minha mulher está lá dentro com as
outras mulheres. Há gente nova também por aqui, e meus filhos fazem parte dessa
geração que convive intimamente com a morte no campo e que aprenderam que a
vida é assim mesmo: uns têm de ser sacrificados para o bem dos outros. Eis que
chegam os engradados com cerveja e meu pai despeja o líquido amarelo
borbulhante em uma caneca para mim. Senta-se ao meu lado no banco de madeira e bate
carinhosamente em minha coxa. Ergue as sobrancelhas e a sua caneca. Abre seus
lábios sem vergonha de mostrar os poucos dentes que lhe sobraram.
Sempre
foi um bom guerreiro o meu velho. Mesmo quando minha mãe morreu, ele aguentou a
dor e seguiu em frente. Ainda tinha motivos para viver: filhos e netos. Aprendi
muito com ele. Minhas maiores recordações são do tempo de moço, quando perdia
horas vendo meu pai trabalhar na “oficina” do quintal de casa. Na verdade era
um velho galpão que tinha duas telhas teimosas e adoradoras de chuva. Uma delas
me rendeu um braço quebrado graças à queda do telhado, mas não reclamei: meu
pai amava seu cantinho e prezava por suas ferramentas sempre secas. Nunca
esqueci o aroma da oficina. Entrava e via meu pai através da espessa fumaça de
seu cachimbo. Aquilo se misturava à madeira queimada por ferros quentes e me
recordava os momentos em que eu ficava à beira do fogão de lenha vendo minha
mãe habilmente girando os cocos sobre a brasa: depois eu os jogava no chão e
catava os pedaços para encher a boca. Chegavam pedidos de toda a cidade para
ele: pés de cadeira trincados, dobradiças estragadas, rodas de carros de
bois... havia uma diversidade de requisições que era inversamente proporcional
à capacidade de armazenamento do galpão. Muitas vezes minha mãe reclamava na
hora do jantar: “Você só traz tranqueiras pra dentro de casa. Vai atrair os
bichos” – ela ralhava. Meu pai piscava para mim de forma debochada: sabia que a
mãe falava da boca pra fora: tinha muito orgulho de contar para as vizinhas o
quanto seu velho era trabalhador. É esse mesmo olhar carinhoso que meu pai me
oferece agora. Bato minha caneca na dele e meneio a cabeça, afirmativamente. Reparo
em suas rugas e em como a idade afeta as pessoas. Meu pai dera a vida pela
gente, e jamais o vi maldizer as dores que sentia no corpo ou os cortes e
farpas nos dedos. Meu exemplo. Ele ri e fala com meu tio. Bebo um gole da
cerveja e continuo a observar seus gestos. Ele se vira e pergunta o que é, se há
algo para lhe dizer. “Não, pai, não é nada” – respondo covardemente. Eu tenho,
sim, o que dizer. Dizer o quanto o amo, dizer que o admiro. Mas não posso.
Nunca disse isso durante minha vida toda. E vou morrer sem dizer. Simplesmente
não consigo. Ele suspira e ri para mim. Ele sabe o que sinto. Não preciso dizer
nada. Nossa relação é baseada em gestos, pai, eu sei... Ele bate novamente sua
caneca na minha, bebe o último gole, a deixa sobre a mesa e vai embora falar
com alguém.
Já
é noite e todos estão reunidos. Uns parentes tocam seus instrumentos ao lado da
fogueira. Todos comem o porco e bebem cerveja. Estão todos felizes e celebram
nossa reunião. Um grupo está em pé, dançando. Minha esposa está ali, com seu
vestido florido e longo, leve como os seus cabelos alaranjados pelas chamas.
Eles rodopiam e cantam. Batem palmas. Meus filhos também se divertem. Meu pai
arrisca uns passos e é amparado por minha tia. Todos riem. A festa continua e
minha esposa aparece ao meu lado com um prato cheio de pequenos pedaços do
porco que vi matarem. Ela me olha com amor. Pega um naco e põe em minha boca.
Sinto seus dedos delicados esbarrarem em meus dentes. Ela sorri, divertida. Come
um pedaço também e diz que vai dançar mais um pouco. Pede que eu lhe acompanhe,
mas não sei dançar, tenho vergonha. Ela vai; não sem antes me dar um beijo
engordurado. A mulher que amo parte para junto dos seus.
Logo
sinto um aperto no joelho. Minha filha mais nova está ao meu lado com alguma
coisa na mão. “Pai, o que é isso?” – pergunta com sua voz de quem mal acabara
de aprender a falar. Em seus dedinhos sujos de terra está uma esfera brilhante
e leitosa ao mesmo tempo. Pergunto onde achou a bola de gude. “Ali na árvore” –
e me aponta a mangueira de meu primeiro beijo. Levanto-me e pego minha filha em
meus braços. Beijo seu rosto.
“Vamos lá, filhota. Papai
vai lhe ensinar uma brincadeira”.