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Pequeno ensaio de micropaisagensv

Olho em meus próprios olhos e não me reconheço. Ou me encontro de modo diferente do que sempre fui. Pensa ela, de corpo tímido e gesto delicado sobre a figura que a observa. Adocicado tabaco que sufoca seu pulmão naquele lugar escuro. O peito arfa, e com ele os pêlos captam a essência do fumo com o álcool exalado por centenas de bocas invisíveis que sorriem para aquela cena. Ela também sorri. Mas de seu modo acanhado: leve risco hiperbólico no canto dos lábios. A moça tem mãos suadas e as deposita sobre o colo, pressionando o fim do ventre, assanhadamente beliscando a virilha protegida pelo vestido casto. Lembra-se daquele final de tarde em que ele a tomou em seus braços, circundando sua pequena cintura com os dedos fortes, final de ventre-início de virilha. Rubra face que tenta esconder. Se me pegam pensando assim, ai de mim – martela a Culpa sua cabeça. Seus pés estão apoiados pelos dedos, nervosa com a visão que tem diante de si. Dá graças em ter somente a luz amarela como intrusa na cena: isso disfarça o olhar decidido da mulher que a observa.

            É ela mesma, embora não admita. Cores e gestos diferentes. Cabelos esvoaçantes e boca semiaberta. Aspira ao tabaco da noite e degusta cada vapor de bebida dos homens que a desejam, viciados em sua tez. É mulher, não moça. É fêmea, não esposa a que agora vê uma quase menina recatada, de cabelos presos e mãos no colo. Mal sabe da vida, pensa ela. Olhos semicerrados, rememorando os toques entrepernas de cavalheiros casados. Puxa o vestido para provocar. Olhos que nada enxergam reparam o modo em que o fino tecido sobe por sua perna: roça o calcanhar e escala a panturrilha, termina mostrando o começo do contorno de sua coxa delineada. Perdição. Respiração baixinha, onde os seios que, infelizmente, cobertos disputam a fronteira do tecido responsável por ombros desnudos. É ela quem sente a mão daquele homem descendo o ventre, tocando-lhe o intocável, o errado e o sujo. Pecado que, a ela, é permitido pecar. Geme baixo entre a luz amarelada. Mas não geme por prazer: desejaria, mais do que tudo, ser a mulher tímida diante de seus olhos. Ela é amada, não apenas desejada. Ela, pensa, é a mulher. Eu sou apenas uma moça. Fecha os lábios.


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