Não
me recordo se era outono ou inverno. Na realidade, isso não importa por aqui:
todos os dias são frios, e a neve é apenas uma coadjuvante matreira que chega
para mordiscar nossas peles. Lembro, contudo, que era um dia que começou bem,
com o sol tímido vencendo a barreira do oceano e escalando as montanhas daqui.
Como sempre, despejei brennevín[1]
em minha caneca, encapotei-me com o surrado casaco que fora de meu avô e fui
ver nossas ovelhas. Há anos me acostumara com o odor adocicado do estrume dos
animais associado à grama tão típica de Eyjaföll; a recíproca sempre se mostrou
verdadeira: os bichos sentiam o cheiro do couro velho que me agasalhava e
baliam à espera de mais comida. Eu pegava a ração no depósito aos fundos de
nosso quintal e retornava assoviando uma canção triste que minha mãe cantava
quando eu era pequena: falava de uma mulher que se lançava ao mar ao saber do
afogamento de seu marido pescador. O mar... nunca estive no continente, minha
vida toda foi banhada por mares e oceanos que jamais tive coragem de desbravar.
Voar? Seria uma solução, mas confesso que me acomodei por aqui: sou da terra,
mãos sujas, apetite rústico, rosto vermelho, perfume de ervas. Não... acho que
agradeço por nascer nesta ilha e ter a chance de me misturar às rochas e rios e
ficar quieta, sem perturbações.
Na quietude daquela manhã alimentei
as ovelhas e voltei para dentro de casa, sentando-me próxima à lareira e
abrindo um livro qualquer, um dentre os muitos ensebados que jaziam na mesa
central da sala. Folheei com os pensamentos perdidos. Coisas pessoais. Felizes.
Nostálgicas. Boas demais para serem eternamente alegres. Entristeci-me aos
poucos. O retrato de casamento dos meus pais, inquisitorial, esfarelava-se ao
bater na parede. Levantei-me para fechar o trinco da janela. Olhos claros em
imagem desbotada e cinza miraram meu semblante pálido, de quase morte. Eu sei,
pai, que as coisas não estão como eram para ser. Minha mãe me afaga os cabelos
quebradiços e diz que há de melhorar, que há, sempre, de melhorar. Sua mão é
quente e segura minha lágrima na pontinha do polegar: nada digo, não sou dessas
coisas, não das que hão de melhorar. Sinto-me sozinha na casa antiga de
madeira. Desvio o rosto do quadro agora endireitado e espio, do quarto, as
ovelhas viverem ignorantes as suas existências maquiadas de boas serviçais –
meu sustento. O silêncio só deixa de vingar quando algum som externo adentra a
residência: nela nada, nunca, se ouve. E foi exatamente o que ocorreu aquele
dia.
Havia voltado para a sala e cochilava
perto do fogo quando os balidos aumentaram de volume. Estranhei, pois raramente
os animais se assustavam. Lobos geralmente atacavam as fazendas mais ao norte,
e mesmo assim já quase estavam em extinção por aqui. Acurei meus ouvidos em
busca de rodas de carros ou turbinas de aviões; nada. As reclamações dos bichos
foram cessando, aliviadas ficavam. Porém, ouvi algo se arrastando pela terra,
contornando a casa. Uma batida na porta. Não abri. A segunda, ritmada, foi mais
intensa. Respirei fundo e puxei a maçaneta. Nada estava ali. Saí e olhei ao
redor. Confiante de que não passava de minha imaginação, entrei. Mal fechei a
porta e ela foi batida novamente. Abri e um homem estava prostrado na entrada,
fraco e com as roupas rasgadas. “Ajude-me” – ele disse.
Hesitei por um momento, pesando as
conseqüências. Mas que mal um homem de aparência doentia poderia me fazer? De
qualquer modo, não dava sinais de ser violento ou de desejar me roubar.
Ajudei-o a acomodar seu corpo à mesa da cozinha e lhe ofereci água. Repetiu.
Pediu algo para comer, mas infelizmente minha despensa estava minguada:
expliquei que só iria ao mercado da cidadela no fim de semana ao lhe dar um
pouco de pão e queijo. Comeu com grande gula, lambendo a ponta dos dedos.
Agradeceu envergonhado e dava mostras de ir embora quando eu – sinceramente
preocupada – lhe exigi que ficasse mais um pouco até recobrar integralmente as
forças. Fomos para a sala. Cedi minha poltrona com descanso para as pernas a
ele, ficando com o pequeno sofá. Ele nada dizia, e eu não queria forçá-lo. Há
muito tempo não escutava minha própria voz: rodeada por ovelhas e montanhas,
minha vida era meramente uma pantomima mal representada. No ritual mensal de
ida à cidade para fazer compras eu tentava ser o mais breve possível, simplesmente
entrando, escolhendo, pagando, saindo. Bom dia, quanto deu? – eram as quatro
palavras que, desacostumadas, lutavam para se manter audíveis no ar. Pigarreei
limpando a garganta e chamando a atenção do homem. Mirou-me com aqueles olhos
purpúreos que jamais vi em outro ser. Sorriu debilmente. Como veio parar aqui?
Essa região é isolada, não há muito a se fazer... Bem, a não ser criar ovelhas
e dormir. Minha voz soou mais alta aos meus ouvidos do que eu esperava, e a
escutava nitidamente dentro da minha cabeça. Anasalada. Desbrilho que auxiliava
a penumbra na sala. Fiquei constrangida comigo mesma: não pela demora de meu
convidado em responder, mas pela nítida sensação de que eu não estava, de modo
algum, sendo hospitaleira (ou minimamente convincente em mostrar interesse pelo
visitante). Retrato de meus pais forçando-me a baixar os olhos. Raiva de mim
por parecer tão idiota diante das pupilas-lupin de meu interlocutor misterioso.
Levantei-me e rapidamente escapuli para a cozinha, tentando me livrar do embaraço
auto-infligido. Abri a geladeira: apenas restos de manteiga. O armário só
contava com o pote vazio de geléia. Abri novamente a geladeira, dessa vez, para
pensar. Vinte e nove, trinta. Pronto, sabia que nem tudo estava perdido. O
galpão do lado de fora ainda teria um pedaço para dois. Estava ali, pendurado
no gancho. Crosta acastanhada. Amoniacal.
Ele ainda estava do mesmo jeito.
Parado. Observando o fogo. Deitei brennevín
em dois copos e coloquei o hákarl[2] sobre a mesa, para tirar a proteção
escura. Cortei dois nacos, ofereci um enquanto jogava o outro para dentro da
boca. Deixei a carne mergulhada na bebida antes de mastigá-la e engoli-la. Soube
que era um típico compatriota quando comeu sem reclamar ou tapar o nariz. A aguardente
me deu mais confiança para entabular diálogo e, pelo visto, a ele também. “Vim
de muito longe” – disse ajeitando a camisa larga – “mas não se engane: estou
aqui por você”. Riu: “Não vou lhe fazer mal. Na verdade, vim para oferecer uma
ajuda, uma ajuda muito boa”. Eu ainda estava com a faca em mãos. “Embora não
lamente – ou sejam queixumes inaudíveis – sei de sua dor, de sua solidão. Não
deve ser fácil viver sozinha nesse lugar. Tampouco conviver com lembranças de
um passado tão trágico... Como é mesmo aquela canção?” – ele se pôs a assoviar
– “Sim, triste sina a de perder um marido para o mar. É irônica a vida, não?
Sua mãe, mal sabendo, cantou o seu futuro. E a criança que carregava no ventre
também deixou de respirar junto às águas de seu próprio corpo”. O que quer de
mim, monstro? – gritei, violentando o ar gelado daquela conversa conservada em
dedos entrelaçados e credos que tanto repeti nas duas noites de luto. Ele ficou
sério: “Presentear você. Com felicidade. Digo-lhe: carrega, agora, outra cria
em sua barriga”. Impossível! “Mas é claro que o é! Há muitos anos não
experimenta o gozo, não sente outro corpo que não seja o seu mesmo. Minha
querida: abraçar-se com os próprios braços à noite não gera vidas. Lágrimas que
pingam em seus dedos, os quais beija de olhos fechados imaginando amor, não são
o suficiente para ser fecundada. Não. Basta o meu desejo. E você o tem: desejo
que meu filho cresça em seu organismo. Não vou tocá-la, tranqüilize-se, pois
isso iria contra o ato que, sinceramente, faço com amor. Também sinto-me solitário,
e quero um filho para amar, educar, brincar”. Tire-o de mim! “Pedido
impossível. É como eu falei: felicidade para você, felicidade para mim. Você
terá a criança. Alimentará e a vestirá. Tem dez anos de vantagem sobre mim: ao
término, virei buscá-la”. Eu chorava compulsivamente. Cria que tudo era
verdade, por mais inverossímil que pudesse parecer. Algo naquela voz, naqueles
olhos... psicologicamente, já até sentia meu corpo transformado. Todos nós,
nascidos nessa terra, já ouvimos falar do huldufólk,
o povo escondido, mas receber a visita dessa gente é algo raro, até mesmo
inacreditável. São histórias para crianças – repetia para mim – são apenas
histórias, nada disso está acontecendo, é apenas um sonho. E isso mentalizava
quando o vi abrir a porta, olhar novamente para mim, e caminhar noite adentro.
Corri para fora, mas somente escutei os delicados ruídos noturnos da natureza,
e os resmungos rotineiros das ovelhas insones.
Acordei assustada com barulhos na
janela de meu quarto. As gotas de chuva cutucavam o vidro e apagavam a visão
dos animais, escondidos e protegidos. Uma dor de cabeça terrível forçava meu
cérebro para fora. Entendi o motivo, ou melhor, o rememorei ao avistar a
garrafa vazia no chão da sala. Fui ao banheiro e olhei meu pálido reflexo no
espelho outrora intacto. Que pesadelo horrível, pensei. Lavei o rosto, vesti o
casaco de vovô e fui cuidar das ovelhas.
No mês seguinte minha menstruação
não veio. Nem no outro. Então não havia sido um sonho ruim, um excesso de
álcool: estava grávida. Entrei em desespero e cogitei seriamente o aborto. Mas
olhava o retrato de meus pais e me envergonhava de tais pensamentos. Por outro
lado, seria bom ter uma segunda chance, ter um pouco de harmonia e vida dentro
de minha existência tão fadada à solidão. Embora relutante, fui ao médico e fiz
todos os exames. Meu ventre crescia a cada semana e minha necessidade de ir ao
banheiro aumentava proporcionalmente. O cheiro do hákarl me fazia vomitar e deixei de produzi-lo. O brennevín também foi afastado. Eu temia
pela segurança da criança. Amava aquele pequeno ser impensado mais do que tudo.
Construí com minhas próprias mãos o seu berço e o coloquei ao lado de minha
cama, com uma pequena ovelha de pelúcia que há muitos anos havia me pertencido.
Foram nove meses de privações, sensações estranhas e incertezas, mas, finalmente,
em um fim de tarde, meu menino nasceu no pequeno hospital da cidade. Sadio.
Lindo. Saudável. E com os olhos violetas do pai.
Criei meu filho do mesmo modo que
fui criada, sem exuberâncias, ensinando as coisas práticas da vida, que
realmente lhe seriam úteis algum dia. Logo após alimentarmos as ovelhas, o
levava à escola para filhos de “gente do campo” – como nos chamam as pessoas da
cidade. À tarde, ensinava-lhe o trabalho com madeiras e, por vezes, íamos
pescar (atividade que mais lhe agradava). Meu menino me amava, e vivia me
abraçando e beijando. Certa vez perguntara por que não tinha pai como os demais
garotos da escola. Respondi o que as mulheres sempre respondem por aqui: morreu
em dia de tempestade no mar. Um ludíbrio que, de alguma maneira, sempre tinha
um ponto de verdade na minha terra. Mas o tempo passou, rápido demais,
desgraçadamente bom o bastante para fazer-me relegar a promessa daquele homem para
segundo plano. O décimo ano de meu filho chegou e, com ele, as batidas ritmadas
na porta que eu ouvira em outra ocasião.
Respirei fundo e mantive a calma.
Ali estava, vestido inteiramente em branco, aquele ser. Sorriu. “Muito bom lhe
rever. Onde está a criança?” – perguntou sem rodeios. Algo se formava
ligeiramente em meu cérebro, e o convidei a entrar. Meu garoto estancou diante
da visita vista pela primeira vez. “Como vai você?” – perguntou ao meu filho,
despenteando-lhe os cabelos. Interrompi o contato colocando-me entre os dois.
Sentamo-nos. Ofereci uma bebida, e seus goles foram a única coisa a rasgar o
silêncio. “Sua mãe já lhe contou sobre mim?” – devolveu o copo. “Vejo que
sequer teve a decência de alertar o menino. Uma hora tão importante se aproxima
e ele nada sabe. E você teve dez longos anos para contar a verdade”. À
indagação de meu filho, respondeu: “Há muito, muito tempo vim aqui e sentei-me
nesse mesmo lugar. Na época, sua mãe era uma pessoa, digamos, não muito feliz
com o destino. Mas eu mudei isso, a vida dela mudou depois de nos conhecermos...
Para não me alongar: você é meu filho”. Desconfiado, rebateu o argumento do
homem com toda a inocência e sinceridade de uma criança de sua idade. “Seu pai
não morreu no mar. Nunca houve outro pai que não fosse eu. Sei que eu deveria ter
aparecido antes, mas problemas me impediram. Contudo, cá estou e é a você que
vim buscar”. O menino começou a chorar, buscando meus braços. O pranto virou
gritos quando o homem lhe tocou a mão, tentando guiá-lo para fora de casa. Tire
a mão dele, seu desgraçado! Ele jamais lhe pertenceu e nunca permitirei que o
leve de mim! Mandei meu filho sair de casa, pedindo que fosse cuidar das
ovelhas. “Por que quer dificultar as coisas, mulher? Já lidei com muita gente
que nem você e, garanto, em nenhuma oportunidade eu perdi”. Vá embora e não
retorne. Deixe-nos em paz! “Vou pegar o garoto agora, queira ou não” – e se
ergueu em direção à saída. Fora de mim, assustada demais com a possibilidade de
nunca mais ver meu filho, corri para o quarto e peguei o rifle no guarda-roupa.
Quando colocava o segundo pé para fora da casa, chamando meu garoto, disparei
em suas costas. Caiu ensangüentado, mas conseguiu se virar. Encarando-me,
disse: “Vai se arrepender profundamente do que fez! Voltarei e tomarei o meu
filho de qualquer jeito, mulher”. Puxei o menino para dentro de casa e tranquei
a porta, tremendo; nunca havia disparado em uma pessoa, geralmente usava a arma
para afugentar os lobos. Esperei a noite cair densa sobre a relva para espiar
pela janela o exterior. Não havia mais homem ali. Decerto saíra arrastando-se,
movido, quiçá, pelo desejo de vingança.
Passei a noite em claro, atenta a
qualquer ruído que viesse de fora. Fiquei na sala com a arma em mãos enquanto
meu filho dormia no sofá, ainda bastante confuso para formular questões sobre o
assunto. Quando clareou o acordei e mandei se vestir, enquanto colocava roupas
em sua mochila. Vamos viajar, amor. Vamos voar de avião, vai ser legal, você
sempre quis saber como era, não é? Hoje teremos a sensação de sermos como pássaros.
Rapidamente arrumei minha mala e corri para libertar as ovelhas: agora seriam
livres nessa terra, assim como eu, assim como nós. Meu filho já estava dentro
do carro e eu trancava a porta de casa quando ouvimos o maior barulho de nossas
vidas. Parecia que o céu havia despencado. Era simplesmente ensurdecedor. O
chão tremeu e a manhã, de uma hora para outra, ficou nublada. O garoto me
chamava de dentro do carro, com medo. Bem à frente do veículo, no horizonte
quase perdido, naquela parte de mundo que eu me acostumara e crescera vendo o
sol lutar para nascer estava o Eyjafjallajökull. O majestoso vulcão parecia
desfrutar de seu cachimbo, assoprando anéis de fumaça entre seus dentes de
fogo. Em toda minha vida jamais havia presenciado sua erupção, e agora eu sabia
o quanto era terrível.
Arranquei meu filho do carro e
voltamos para casa. Cerrei todas as janelas e desejei do fundo de meu coração
que minhas ovelhas tivessem sorte no inferno que se movimentava lá fora. Em
poucos minutos o dia escureceu. Agora não nevava por aqui: os flocos deram
lugar às cinzas que caíam pesadas e destrutivas sobre a terra. O ar ficou
estagnado, senti-me dentro de um rio podre, parado, presa sem conseguir
respirar. Tentava acalmar a criança em uma reciprocidade sem fé de “vai ficar
tudo bem”, “logo acabará”. Mas os barulhos continuavam e a temperatura dentro
de casa aumentava. A lamparina a óleo estava no fim e finalmente acabou a luz
antes que eu conseguisse ir à cozinha buscar combustível. E foi de lá que uma
risada horrível surgiu. Meu sangue congelou. Na escuridão, o riso aumentou, e
foi se aproximando aos poucos. “Pensa em fugir com meu filho?” – quase desmaiei. O vulto parecia crescer conforme
chegava mais perto. “Venha, garoto, é hora de irmos” – começou a puxar o menino
com força, quase o arrastando. Aos gritos de “Mãe! Mãe, me ajude, por favor!”,
respondi tateando o escuro atrás de meu rifle. Só então me dei conta de que
havia o deixado no carro. A porta se escancarou e vi os dois, aquele homem e
meu filho, mesclarem-se à ventania e cinzas que varriam a região. Não consegui
ouvir meu próprio aulido: as janelas não suportaram a violência da tempestade e
estouraram, encharcando minha casa com as ondas cinzas e sufocantes. Ainda ouvi
meu filho me chamar mais uma vez antes de a porta se fechar e eu perder a
consciência.
Não sei quanto tempo eu fiquei fora
de mim. Quando acordei quase metade de meu corpo estava entre o material
vulcânico. Engatinhei para fora e a paisagem era catastrófica: para piorar, o
vulcão ainda expelia sua ira. Nenhum sinal de pegadas na neve forrada. Nenhum
sinal de meu filho.
Alguns dias mais tarde o Eyjafjallajökull
voltou a se acalmar. Contudo, no mundo inteiro, só eu sabia a verdade: o meu
amor, o meu filho que surgiu como uma dádiva em minha vida havia sido carregado
para dentro do vulcão. Lá, tenho certeza, vivia o elfo que tirou tudo de mim.
[1]
Bebida alcoólica feita a partir da fermentação de polpa de batata.
[2]
Carne de tubarão que é apodrecida antes do consumo.