Olhava
as cenas dinâmicas do televisor. Intermitentemente, a sala escurecia por
instantes. Mas não adiantava: não havia nada de interessante nos canais. Um
bocejo. Dois. A entediante falta de concentração... Levantou-se. Na cozinha,
tirou a groselha e o leite da geladeira. Despejou o xarope sobre o conteúdo
branco e viu, como num passe de mágica, as cores se fundirem em um rosa pálido.
Bebeu sua poção. Limpou os lábios com a ponta da língua. Reparou pela fresta da
porta que a luz do hall acendera. Pequenos passos ligeiros pararam em frente ao
apartamento vizinho. Campainha. O rapaz, dono daquele abafado lugar, atendeu as
crianças. Pelo olho-mágico, observou suas mãos fortes distribuírem balas e
pirulitos aos fantasiados monstros, vampiros e super-heróis do condomínio. Um
esboço de sorriso se formou em sua pele de algumas décadas. Apertou as mãos
delicadas e voltou para a sala. Rapidamente, esvaziou a minúscula bomboniere da
estante e voltou a espiar pela porta, com chocolates quase escorregando pelos
seus dedos. As crianças foram aos dois vizinhos da frente e receberam muitos
quitutes. Quando uma das meninas ia apertar a campainha de seu apartamento, foi
barrada pelas demais. “Você é louca? Vai chamar a bruxa?” – ao que outra
emendou: “Dizem que ela mata a gente e depois come”. Houve ainda um “come a
gente e depois mata”, mas nesse ponto os pequenos já entravam no elevador,
partindo para a aventura no andar superior.
Começaram a surgir marcas em suas
mãos. O rosa pálido de sua tez ganhou nódoas esbranquiçadas e os chocolates
foram todos esmagados. Arremessados contra a pia da cozinha, juntamente com uma
gotícula salgada que escorrera pela bochecha e agarrara-se à ponta do cabelo. Estancou
com os pés sobre o frio piso marmóreo. Uma sensação de cansaço castigou seu
corpo. Não conseguia pensar. Sua respiração estava acelerada e só piorava
devido ao cerramento dos dentes, que pareciam mastigar a si próprios. Sentiu-se
humilhada pela dúvida: teria seu vizinho escutado as palavras das crianças? Ele
teria rido daquilo? Será que também achava que ela fosse uma... Seus
pensamentos foram cortados pelas unhas que lhe machucavam o monte de Vênus.
Atentou para a palma da mão ferida: sua linha da vida era curta demais, e
correntes contornavam seu pulso.
No banheiro, abriu o espelho e
retirou o frasco de água oxigenada. Os finos cortes borbulharam, carregando o
pouco sangue pelo ralo. Fechou o espelho e se admirou. Suas rugas. Suas
olheiras. Sua pele que caía. Seu nariz de um tamanho que a incomodava. Tudo o que
via lhe dava desgosto. As crianças não estavam tão erradas, afinal – pensou
consigo. Talvez não fosse o fato de sempre reclamar do barulho que elas faziam.
Tampouco, ter votado contra a utilização da verba para a reforma do playground:
menos brincadeiras, menos barulho, menos crianças – foi seu argumento na
reunião daquele dia.
Foi para a cama e teve uma noite
agitada.
Pela manhã, vestiu seu casaco
escarlate e foi trabalhar. A fábrica de
perfumes não era o lugar mais aprazível do mundo. Sentia-se enjoada com aqueles
aromas. Passou em frente ao laboratório de criações e achou bonitas todas
aquelas cores nos frascos. Seguiu e trocou-se no vestiário: jaleco branco,
luvas, touca, máscara. Cumprimentou os colegas de trabalho e sentou-se diante
da enorme esteira. Um vidro após o outro passavam por ela, que os agarrava e
rotulava, depois colocando-os em caixas. A cada duas horas, tinham dez minutos
de descanso. Então aproveitava para saborear a vermelhísssima maçã que trazia
de casa. Comia em silêncio, apenas escutando as conversas das mulheres.
Conversas sobre namorados e maridos, filhos e sogras. Reparava nas alianças em
seus dedos e, de repente, a maçã ganhava um sabor novo, apodrecido. Engolia com
sofridão e voltava ao trabalho.
Ao final do expediente, bateu seu
cartão e foi à pequena loja que a empresa mantinha para os funcionários. Tudo
com desconto. Havia recebido o salário há três dias e... bem, ainda assim
sobraria uns trocados. Olhou os frascos nas prateleiras e pediu para
experimentar alguns. Não entendia muito de fórmulas e acordes, mas um dos
perfumes lhe pareceu essencialmente delicioso. Sorriu. Pagou e, no canto da
loja, meio escondida e sem jeito, despejou gotinhas de divindade em seus pulsos,
pescoço e orelhas. Estava, agora, gostosamente perfumada. Para quem? Só ela
sabia.
Quando o elevador abriu, deu de cara
com seu vizinho. Ficaram breves segundos se olhando. O homem pigarreou, como se
dizendo, “desculpe, mas devo descer”. Ela saiu de sua frente, sorrindo até o
momento em que o elevador sumiu. Dentro do cubículo, o rapaz sentiu-se
maravilhado com aquele aroma ao mesmo tempo seco e temperado com maçã. E
lembrou dele durante o resto da noite em seu trabalho.
Ela ficou extasiada. Não acreditava
que um simples perfume teria tal efeito. Desde então, programou os horários de
seus ônibus e metrôs, a fim de que batessem com a saída para o trabalho de seu
vizinho. E deu certo: por meses eles se viram. Por meses ela deixava seu rastro
perfumado no elevador, embebedando-o. Por meses ela frequentou a loja,
diminuindo o estoque do produto.
Certa tarde, graças a um dia de folga,
foi ao cabelereiro. Gastou um bom dinheiro se embelezando, ficando bonita para
ele. Quando a noite chegou, correu para o elevador e desceu. Aguardou uns cinco
minutos, até que chegasse a hora de ele sair do apartamento. Quando os
ponteiros marcaram o correto, adentrou o equipamento e apertou o número de seu
andar. Fingindo naturalidade e surpresa, avistou seu vizinho com a mochila,
pronto para o trabalho. Esse dia a conversa foi além de simples boas noites ou
atés logo: ele estancou, mirando o esplendor da mulher. Não pôde deixar de
reparar em seu cabelo ajeitado, e a elogiou sinceramente. Ela se derreteu. Pela
primeira vez, beijaram-se no rosto, despedindo-se.
Aquela noite ela não dormiu.
O fim de ano se aproximava daquela época
em que trocas de presentes são inevitáveis. Ela pensou consigo mesma: “Ora,
irei comprar uma lembrancinha para ele! Tenho certeza de que gostará!”.
Acertou. O homem adorou a camisa de seda perolada dada num gesto de ousadia,
cerca de duas horas antes da saída dele para o trabalho. Embora não tivesse
nada na hora para retribuir – e ela insistisse que não queria nada – ele lhe comprou
rosas no dia seguinte. Quase chorando, ela agradeceu com a alma.
A areia do tempo foi caindo e sua
curiosidade foi aumentando. Por que ele não dizia nada? Por que não a
cortejava? Por que não a beijava ou acariciava? “Por que não me ama?” – pensou
ela. Em uma das noites, após despedirem-se, resolveu o seguir – “de longe”,
segundo ela – para ver onde trabalhava de domingo a domingo. Embarcaram no
metrô, e ela quase o perdeu na multidão quando desceram no Centro da cidade. As
ruas eram bem mais escuras naqueles cantos. Ele encontrou uns amigos,
apertou-lhes as mãos e conversaram por alguns minutos. Depois, cada um se
dirigiu a um quarteirão. Seu vizinho foi para a esquina e permaneceu ali,
fumando. Não demorou muito para que um carro encostasse. Ela reparou que uma
mulher dirigia e que abrira a janela do passageiro para conversar com ele. Após
breves instantes, seu vizinho entrou no carro e partiram rumo ao bairro da
cidade conhecido por seus pernoites.
Gotículas salgadas se misturaram ao
perfume que passara no pescoço.
Em casa, olhou-se no espelho. E arranhou
seu rosto com o máximo de força que pôde. Bateu os punhos na pia, derrubando o
espelho. Junto com os cacos no chão, sua vida se esvaiu. Caiu se contorcendo
com fortes dores no estômago. Suas mãos se fecharam envolvendo os pedaços de
vidros. E só acordou quando o dia se fez presente, observando as manchas
vermelhas secas que estavam no banheiro.
Naquela noite, observou pelo olho-mágico
seu vizinho a procurando no hall, em vão. E seus lábios tremeram.
Sete dias se passaram. O homem estava
assistindo TV quando ouviu uma delicada batida na porta. Abriu e ali estava sua
vizinha com um sorriso bondoso e uma taça em mãos. “Desculpe incomodar, mas é
que ganhei um vinho e gostaria de compartilhá-lo. É muito triste beber
sozinha!” – riu. Ele concordou em acompanhá-la. No apartamento dela, admirou a
belíssima e enorme árvore de Natal que alcançava o teto. Sentaram-se no sofá e
conversaram um pouco. Ela foi até a cozinha e trouxe a garrafa de vinho com as
duas taças douradas.
Brindaram.
Ele bebeu e ela riu baixinho. E a cada
meia dúzia de palavras dele, ela ria mais e mais. As frases dele foram ficando
desconexas. O que antes era um leve rubor causado pelo álcool, foi se
transformando em asfixia. Ele derrubou a taça, perplexo com o olhar maldoso
dela. Desmaiou.
Quando recobrou a consciência, estava
ajoelhado, e folhas artificiais verdes roçavam seu corpo. Tentou se mexer, mas
não conseguiu. Sentiu seus pulsos serem apertados contra o tronco da árvore. A
mulher surgiu, enrolando o restante da corda em sua cabeça, prendendo-a para
trás. Seus gritos foram abafados pela fita adesiva. A mulher puxou uma cadeira
e sentou-se diante dele. Apenas ria. Abriu um pequeno estojo de costura e
retirou sua tesoura e pinça. Na hora em que tirou a fita da boca do vizinho,
aproveitou suas injúrias para prender-lhe a língua com a pinça.
Ele perdeu a cor.
Com pouca agilidade, a mulher cortou-lhe
o músculo com a tesoura, lavando suas mãos com o sangue do rapaz. Ele grunhia,
mas não havia mais moradores naquele andar durante o dia: todos trabalhavam.
Incomodada com os gritos secos que o homem emitia sem parar, voltou-lhe a fita
sobre os lábios vermelhos. Foi até a cozinha e trouxe uma pequena, mas afiada,
faca: a mesma que usava para limpar os peixes.
Um pequeno talho. Dois. Três. Quanto
mais ele protestava, mais ela lhe levantava a pele com a faca, criando inúmeras
escamas dérmicas. Dos pés à cabeça, retalhou-lhe. “Ora, mas você agora está
parecendo um dragão! O MEU lindo e vermelho Dragão!” – disse, animada, antes de
beijar-lhe a fronte gotejante.
Depois foi tomar banho e saiu para o
trabalho. Vestindo seu casaco escarlate.