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Reflexos

Pelo reflexo no vidro era possível observar quem observava. A mescla de fios loiros e castanhos reparava em alguém do outro lado da rua. Na escuridão do estacionamento de um depósito de materiais de construção, um homem de costas para o movimento dos carros urinava. Os olhos da observadora não mostravam estranhamento, malícia, sarcasmo ou qualquer coisa do gênero: apenas olhavam uma cena cotidiana. Talvez fosse mãe, e já vira seu filho fazer isso, ou até mesmo o tivesse aconselhado a procurar “um canto” nesses momentos. Seus olhos de mel não brilhavam, não estavam focados; aquela mulher estava ausente do mundo que girava ao seu redor, no ônibus. Parecia cansada. Nos poucos segundos que separaram a parada do ônibus para o desembarque e seu inevitável seguimento, a mulher observou aquele rapaz. E eu a observei.

Horas antes, já havia exercitado meu olhar por meio de reflexos. Na verdade, grande parte dos dias é assim: tento ver aquele que não pode me ver. O pouco de física que aprendi me serviu para isso: ao menos consigo me posicionar para ter o melhor ângulo de visão. Quase sempre vejo retratos. É muito comum que somente os olhos se movimentem nesses retratos: a maioria das pessoas, quando sozinhas, pouco se mexe nos transportes coletivos. Evitam olhar cara a cara a pessoa que está a sua frente. Baixam a vista. Alguns vêem os pés da pessoa que não conseguiu assento. Outros aproveitam para reparar nas calças, nos detalhes que mais interessam, pois tudo fica à altura dos olhos. Com o auxílio do reflexo no vidro, é bem possível observar os decotes mais interessantes. Talvez o reflexo no vidro seja uma espécie de porta de entrada para um possível “posso segurar sua bolsa?”, mas tudo vai depender do quão atraente a pessoa se mostrou ao ser notada lá no fundo do reflexo, entre as ruas e carros. Mas não posso exagerar: também há casos de “posso segurar sua mochila?” quando notamos alguém cansado e carregando peso. Mas, na essência, a gente ajuda os que despertam interesse, mesmo que a bolsa da mulher parada tenha míseros 300 gramas. Como recompensa do fardo carregado, ganhamos um “obrigado” ou, também, um sorriso. Hoje, quando fui à farmácia, a atendente disse “obrigado, meu anjo”, ao me dar o troco. Mas reparei que era algo simples para ela, que ela dizia isso a todos, então pensei comigo: “Porque ela teve de falar isso para mim? Será que sou tão idiota de me lembrar desse ‘obrigado, meu anjo’ pelo resto do dia?”; e agora escrevo sobre o fato... Mas também, há uns anos, perto da Sé, uma atendente duma lanchonete me chamou de “Amore”, na época, uma novela tinha esse jargão, se não me engano. Na ocasião, pensei a mesma coisa: “Porque ela teve de falar isso para mim? Será que sou tão idiota de me lembrar desse ‘Amore’ pelo resto do dia?”; anos depois, cá estou, escrevendo... Quando tinha uns 10 anos, ia numa Quermesse que havia perto da casa de meu tio, é um orfanato de meninas (não sei o termo correto) cuidado por freiras, e bestialmente, nunca me esqueci que, numa das barracas (acho que era a de pesca no tanque de anil), certa vez, uma das meninas de lá se atracou em meu braço e falou “casa comigo!”, as outras meninas que estavam junto deram as famosas risadas: como sempre, fiquei vermelho; se não me engano, o nome da garota era Maria José, ou Maria do Carmo, algo do tipo. Na primeira série, aos 7 anos, minha prima estragou tudo contando a uma colega de classe, a Luana, que eu gostava dela: tive que agüentar a risada dela. Porém, um ano antes, recordo-me que eu gostava de uma garota do Pré, a Vanessa, ela ia de carona com a gente, no carro do meu tio; mas ela sumiu no ano seguinte, hoje seu rosto me é um vulto, mas lembro que, ela também tinha cabelos loiros e castanhos. Talvez fosse ela naquele ônibus, observando o sujeito urinar no estacionamento do depósito de materiais de construção. Talvez não. Seja quem fosse, não importa: logo depois de observá-la, voltei a reparar em minhas unhas e no estranhamento que causam nas pessoas quando me seguro nas barras dos ônibus ou metrôs. Segui meu rumo, pensando na analogia entre o violão e a mulher, e na sua não-originalidade, já que todos os poetas e músicos fizeram a mesma analogia. Nesse momento, lembrei o que meu amigo Neto me disse no ônibus naquele dia, horas antes de observar a mulher, quando íamos para o Centro: “Nós, poetas, estamos pré-dispostos a sofrer mais ao amar”.


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