Introdução
Após o jantar ocorrido na
noite de 8 de Novembro de 1922 com os principais membros do Partido, Nádia
Allilúieva, esposa de Ióssif Stálin, trancou-se em seu aposento no Kremlin, suicidando-se
com um tiro. Esse fato marcou profundamente o resto da vida do ditador. Seus
amigos íntimos presenciaram o pranto compulsivo de Ióssif e suas tristes
palavras: “Ela me aleijou [...] Não posso continuar a viver deste jeito...”[1].
Muitos escreveram sobre esse
lamentável episódio. Alguns autores apontam para a constante agonia e
humilhação que Nádia sofria por Stálin na frente dos demais membros do Partido.
Na noite do suicídio, o Kremlin testemunhou uma não rara, mas intensa,
discórdia entre o casal, com direito a pesadas ofensas de Ióssif a sua mulher.
O que poucos sabem – ou até
mesmo teimam em não aceitar – é que a discussão do casal Stálin teve um motivo
muito sério, sobre uma delicada questão. O tormento de Stálin era tamanho, que
só pôde ser remediado com o desenvolvimento do Gulag e a morte de milhares de
inocentes perante os nossos olhos do ano 2006. Após o término da Segunda Guerra
Mundial a dúvida de Ióssif ganhou forma na apropriação de um naco do país dos
alemães. Com o lado vermelho da Alemanha, Stálin empregou os mais sábios
cientistas russos na busca da resposta. Dia e noite trabalharam para dizer ao
ditador algo convincente...
A pergunta que enlouqueceu e
causou o suicídio de Nádia no fatídico 8 de novembro de
“Por
que na Idade Média todos eram clérigos?”
1.
Se você lê este texto, é
porque, obviamente, sabe ler; estudou; passou árduos anos na escola aprendendo
coisas sem o mínimo significado, decorando tabuada, conjugando verbos, jogando
bola, paquerando, brigando, e – principalmente – aprendendo que na Idade Média
a sociedade era estratificada (de maneira bem mais justa do que na Índia,
diga-se de passagem): povo e nobres e clero. Uns nobres podiam se tornar
clérigos, inclusive! O pobre, o povo, a plebs
sordida, aquele amontoado de gente faminta, desdentada, magérrima, de nuca
escurecida pelo sol escaldante, de pele suja, que transmitia a peste bubônica
aos ratos (ou seria o contrário? Não lembro), que de mal gosto ia trabalhar na
terra dos senhores para garantir o direito de matar um franguinho no fim do
mês, que pagava para usar o forno a fim de assar seu pão preto, que se matasse
um coelho no bosque do nobre era punida da pior maneira possível, essa gente, ó
leitor, passou para a História com o confortável título de “anônimo”[3].
Mas já se perguntou de onde
extraíram as informações que nos dão os livros didáticos? Eu já. E respondo:
inventaram. Essa sociedade estratificada não passa de mera invenção do período
revolucionário francês no século XVIII[4].
Engolimos essa besteira há quase três séculos! O complexo francês de nunca ter
ganhado uma guerra sequer levou ao enfrentamento direto dos nobres-croissants e
dos padres. Cabeças rolaram. Quem soltava a corda da lâmina da guilhotina era
uma pessoa do povo. Tendo o poder em mãos, esse mesmo povo tomou consciência de
si e percebeu que tinha, sim, importância. Tal ciência influenciou
profundamente a Ilustração, que passou a escrever tratados sobre a natureza do
homem, colocando todos em pé de igualdade, e mais ainda, em alguns casos,
exaltando a figura do simples cidadão pátrio[5].
“Apareceram” pessoas de todas as épocas e lugares nos estudos. Porém, o maior
pecado dos franceses foi terem atribuído aos seus antepassados francos uma
característica em que mencionava o “povo” como um estamento na Idade Média.
Ledo engano!
2.
Recentemente, documentos que
estavam, de alguma maneira, presos em terras do Oriente Próximo desde a
expansão do Islamismo no século VIII, chegaram as minhas mãos. De todos, os
documentos vindos do Líbano são os que estão mais deteriorados por algum motivo
que, até então, me são desconhecidos (mas providenciarei uma análise dos
componentes químicos presentes; um contato já foi feito com os especialistas
nessa área, de Israel)[6].
Como os documentos foram parar nas mãos dos muçulmanos é uma outra questão que
não sei responder, pois precisaria de mais espaço do que este pequeno artigo
para desenvolver as hipóteses. O que realmente importa é que os papéis trazem
datas entre o início do século VI e meados do VIII. São apanhados de cartas, de
caráter cotidiano, que dificilmente a Igreja hoje aceitaria de bom grado. Agora
transcrevo as partes necessárias.
O primeiro documento vem de
Lyon, datado de 513, chamado De
conversorum todosnorum:
“Bispo Stercus, para o meu
beatíssimo Senhor e para mim amantíssimo irmão em Cristo, bispo Calva. Como vai
tua saúde? Preocupa-me muito as últimas coisas que me disseste. Estás fatigado
com tanta labuta, eu sei. O nosso fardo é pesado, e somente os que ouvem a voz
de Nosso Senhor têm a coragem para tomarem o cajado em mãos e corrigirem nossos
demais irmãos que teimam em voltar ao culto do demônio (Santo seja Agostinho!
Benditas sejam suas idéias!). Semana passada, flagrei o padre de nosso condado
fornicando com uma das monjas no celeiro, em meio à forragem dos animais. De
momento, fiquei a observá-los. Como se movimenta bem a nossa irmã em Cristo!
Parecia ter mais sede pelo gozo divino do que muitos dos nossos. Ela estava de
costas para mim, e apenas pude ver seus ombros nus. Mas antes de que o demônio
tomasse conta finalmente do corpo de ambos, naquele momento em que os olhos
parecem sumir do rosto e o corpo estremecer, entrei
Esse documento, somente ele,
já teria feito Ióssif Stálin dançar a mazurca sobre o gelo em alguma visita à
Sibéria. Não apenas nos dá um marco para a conversão definitiva dos pagãos (“...lembrando-lhes de nossa conversão no
passado quando, graças a Constantino, todos passamos a servir Nosso Senhor
Jesus Cristo”), como também estabelece o primeiro passo para se responder a
questão de porquê na Idade Média só existirem padres, clérigos e afins. Note,
atento leitor, quando o sapientíssimo Bispo Stercus revela o caráter plebeu do
baixo clero: “descendiam diretamente dos
antigos romanos plebeus”, “a
recordação plebéia servisse de lição”, “plebeus
não existem mais, fomos todos batizados”. Vale lembrar também, que este
documento se enquadra naquilo que categorizamos como “pastorais”, ou seja, é um
texto construído na observação do dia-a-dia, para corrigir os cristãos que
eventualmente caíssem em pecado, retrocedendo aos malditos ritos greco-romanos
(o ato de fornicar é a expressão máxima do rito romano, pois os romanos
adoravam os prazeres do corpo). A historiografia contrapõe a pastoral à
hagiografia (vida dos santos), ou até mesmo diz que se complementam. O que é
mais importante ressaltar aqui é o fato de não existirem textos de conversão!
Nada foi escrito para converter, apenas para corrigir! Mais um indício de que
todos eram, no mínimo, padres durante a Idade Média: converter quem já estava
convertido há muito é algo impensável. Devido a tanto tempo ter permanecido nas
penumbras, este documento se perdeu quando a Igreja se fortaleceu, formando uma
unidade, por volta dos séculos X-XI; por isso, não encontramos uma hagiografia
de Santo Stercus de Lyon. Passemos para o próximo.
Documento da cidade de
Briochê, c. 601, Panificorum est
deliciorum:
“[Lacuna. Aqui se perdeu o
remetente e o destinatário] (Já) provaste dos quitutes que padre Damião faz?
Aconselho-te imensamente. [Lacuna]. Pois todos os pães são assados dentro do
próprio mosteiro e distribuídos aos demais irmãos. No passado, houve casos de
incêndios por descuido dos padeiros e cozinheiros, mas hoje Nosso Senhor nos
protege melhor. São assados bem cedo. E duram muito tempo. São azedados no
ponto correto para degustá-los com um bom gole de vinho espanhol ou água mesmo.
Nosso principal sustento vem das massas, apesar de comermos carne vez e outra,
quando trazidas do abate pelos nossos irmãos padres pastores. De resto, o
mingau de trigo e o trigo usado no fabrico dos pães vem dos campos aqui ao lado
do mosteiro. Nossos irmãos que têm mais habilidade para a labuta de plantas
fazem a semeadura e a colheita. Trazem em mulas para o moinho, onde o trigo é
transformado em farinha pelo padre moeiro. No fim, o padeiro faz as delicias só
encontradas aqui, e talvez comparadas com os produzidos no Mosteiro de
[Lacuna]. Comemos poucas vezes ao dia, e em minguadas porções. No resto das
horas, revezamo-nos nas orações para que Deus Todo-Poderoso não se esqueça de
nossa salvação.”
Esse documento é de suma
importância para a compreensão da alimentação dos clérigos na Idade Média. Eles
plantavam. Eles colhiam. Eles preparavam. Eles comiam. O que o texto não deixa
transparecer são as horas do trabalho divididas pelo dia. Sabemos que eles
rezavam muito, por lógica, deveriam trabalhar pouco, o suficiente apenas para
que não faltasse o essencial para se viver enclausurado na parede dos
mosteiros. Sobre esse tema, a construção, só achei poucas frases – de um local
desconhecido – de um padre responsável pela feitura das estruturas físicas onde
vivia o clérigo, o nome dele é abade Lapideus:
“E naquela manhã tive de
castigar nosso amado irmão padre Severinus por ter construído a parede esquerda
do uestibulum ligeiramente mais
íngreme do que a parede direita. É incrível que nosso irmão não tenha aprendido
isso nas aulas de nosso mosteiro. Perdemos a terceira hora de vigília devido ao
descuido do padre. Ocorrido lamentável, que foi punido com o resto da semana a
um naquinho de pão preto e um gole ou dois de água” (Abade Lapideus, De constructorum paredorum, c. 573)[8]
4.
Gostaria de ter a honra de
parafrasear Fustel de Coulanges nesse momento: “Os documentos falam por si
próprios”[9]. Os
documentos acima descritos, os mais relevantes dentre os que tenho aqui,
realmente nos dão indícios de uma coisa: não existiam pessoas comuns na Idade
Média. Existiam apenas padres, e nobres que também podiam ser padres[10].
A auto-gestão clerical é
visível. Trabalham, produzem, consomem. E rezam. Principalmente, rezam. Em
nenhum documento há a ausência de alguma citação ao Divino. Mas em todos há a
falta do povo, da plebs sordida,
daquele amontoado de gente faminta, desdentada, magérrima, de nuca escurecida
pelo sol escaldante, de pele suja e outras características que a historiografia
desde o século XIX – já retomando conceitos do XVIII – teimou em nos forçar
engolir. Fui iludido como você também foi, caro leitor. Percorremos juntos os
documentos e percebemos, também juntos, que nas “entrelinhas” nada se pode
supor da existência de alguém além de padres e nobres-padres na Idade Média.
Desde a conversão compulsória feita na Antigüidade, todos passaram a ser
clérigos, tão somente clérigos. E na Idade Média só houve clérigos, nada mais.
Ióssif Stálin já pode parar
de se revirar no túmulo.
5.
Só há um meio de saber realmente,
e com certeza absoluta, se existiram “pessoas” na Idade Média, e esse meio é a
Arqueologia. Infelizmente, poucos se interessam por estudar os “anônimos” da
História. Só nos resta aguardarmos que os medievalistas abandonem um pouco os
textos divinos e se debrucem sobre a terra. Esperança ainda tenho.
[1] Simon
Sebag Montefiore, Stálin: a corte do czar
vermelho. São Paulo: Cia. Das Letras, 2006, p. 45.
[2] “Thanks,
gentlemen” – original preservado no Museu Britânico de Londres.
[3] No
latim, anonymus.
[4] Na
verdade, não sei ao certo responder o período precisamente. Mas confio nos
franceses de 1789, afinal, depois deles, tudo se inventou.
[5]
Nada mais simples do que nomes como “Emilio”, de Rousseau, e “Candido” de
Voltaire. (o último autor se tornou uma cadeira). Nomes que representam pessoas
comuns. Doravante, mais facilmente notamos nomes de pessoas simples em títulos
de livros: “O Hobbit”, de Tolkien, “O Idiota”, de Dostoiévski, “Brida”, de
Paulo Coelho, entre muitos outros.
[6]
Infelizmente, a minha primeira opção, os laboratórios do Iraque, foi
bruscamente negada, com alegação de nunca terem visto nada de químico. Obs.: o
laboratório curdo desmente as informações iraquianas. Mas, por questões
diplomáticas, apelei para os israelenses.
[7] A
palavra Mártire em nada se relaciona com o sobrenome do autor do presente
texto. A família do autor nada tem de santa. Não passa de falsa e estúpida,
fingindo-se, a cada fim de ano, suportar por alguns minutos os demais parentes.
A promiscuidade na família do autor é notória, excetuando-se o autor.
[8]
Optei por traduzir os documentos e não deixá-los no original latim por dois
motivos: 1) a maioria dos leitores não compreenderia; 2) não sei latim.
[9]
Provavelmente serei expulso da Universidade de São Paulo se descobrirem que citei
um positivista. Por favor, afaste este texto das mãos encardidas da Senhora
Academia.
[10] A documentação sobre os nobres é extensa e desnecessária de ser discutida aqui.