Pular para o conteúdo principal

Silenciosa

Tudo começou com uma coceira. Dessas que dão atrás da orelha. Com a ponta do dedo afastou o cabelo e deu fim àquela chateação. Mas aquele sorriso patético continuou em seu rosto. Os músculos da boca foram retraindo, restando um rabisco. Olhava a movimentação na rua. Os lábios voltaram à seriedade. Mas os olhos não: de espantados pela coceira, tornaram-se vermelhos, irritadiços, e já anunciavam o turbilhão silencioso que ocorreria: a piscina das pálpebras não pôde suportar tanta água e, então, uma gota escorreu. Cortou o rosto para despencar no abismo que o fim de seu queixo proporcionava. Não se preocupava com as lágrimas. Não piscava. Olhava o vazio. Os lábios tremiam de quando em quando. Por sorte, ninguém estava por perto. Seria humilhante ouvir novamente: “Por que choras? O que tens?”. Não havia resposta. Ou haveria, se houvesse coragem o bastante para perguntar-se sobre a origem da dor. Mas não. A cabeça não podia raciocinar naquelas horas. Tristeza não é racional; e na alegria raramente pensamos no porquê das lágrimas. A garganta engolia a poeira da alma. Uma pessoa que se sentia abraçada, contra a vontade, pela tristeza. Movimentação escandalosa de sentimentos! Chega. Fica minutos. Horas. Dias. Semanas. Quando menos se percebe: já não se percebe no espelho. Tomou conta. Cegou-lhe. Passará dias inteiros com os olhos turvados. A terrível sensação de não ter nada mesmo morando num palácio de ouro. Existe um fim. Mas novamente a covardia é mais forte. Deseja de todo o coração a... Isso lhe tira as forças. Olha ao redor. Deita-se na cama. Beija sua Tristeza. Chora nos braços de quem ama. Desejando que tudo aquilo fosse o contrário, que as lágrimas fossem de felicidade. O efeito do remédio chega. Terá pesadelos. Dorme...                                        

Postagens mais visitadas deste blog

Caveira safada

Era aquela maldita caveira novamente.               - Ei, puto, chegue cá!             E ela veio, meio cambaleante, com seu ritmado compasso de fêmur. Caveira mexicana. Sorria com os amarelados-pontos-temerosos-de-dentistas. Trazia um charuto entre os finos dedos da ossatura direita.               - Mas o que faz aqui novamente, peste?               - Sabe como é, caveirando... Invejando os que têm carne.             - Porra, esse povo deve tomar um susto, hein!             - Nem me fale. Não sei porque tanto medo. Uma caveirinha tão simpática como eu.             Coçou as costelas.             - O que é isso aí?             - Isso o que?             - Preso aí, velho.             - Presente para usted.             E retirou uma grande garrafa de rum.             - Conseguiu onde?             - Dei sorte. Geralmente nessa época, só encontro aguardente sem graça. Isso eu roubei de macumba de rico.             Ele cuspiu.             - Cacete, macumba?!

A filha

Quando a mana foi embora, pai pareceu ressentido. Talvez por ser filha mulher, ter crescido agarrada a ele. O laço entre eles se intensificou depois que a mãe morreu. Eu sempre fui quieto, sem saber demonstrar direito o que sinto. A mana, ao contrário, era luz: acordava e dava bom dia, gostava de abraçar, ria à toa. Ela alegrava a casa. Por ser mais velha, chegou aquele momento na vida em que foi atrás dos sonhos. Passou em uma universidade longe e foi morar lá. O pai sabia que era para o bem dela, que ela devia lutar por uma vida melhor. Ele entendeu, mas se entristeceu. O tempo foi passando e ela só conseguia nos visitar por algumas poucas semanas durante o ano. Isso não diminuiu a dor do pai. Mas ele entendia, e nunca chorava na frente dela durante as despedidas.      Certo dia, acordei mais cedo que o normal e peguei o pai escutando as modas em seu radinho de pilha enquanto via os antigos álbuns de fotos que guardava no fundo da estante. Pareceu não perceber minha presença, e con

Um dia de campo

Tive um excelente professor de fotografia na pós. Ele era especializado em fotojornalismo, havia viajado o mundo, suas fotos eram impecáveis. Em suas aulas, analisávamos os fotógrafos mais famosos e me lembro muito bem de ele dizendo, sobre Cartier-Bresson, que aquele francês tinha “olhar fotográfico”, que não importava a máquina que carregava em mãos, ele conseguia, em um instante, congelar no tempo uma poesia. Sabia o exato momento em que devia pressionar o obturador. Eu tive um excelente professor de fotografia na pós. Mas nunca aprendi nada com as aulas.            Posso ter tido o conhecimento básico de como operar uma câmera, regular a abertura, a exposição, a luz. A fotografia, afinal, é a manipulação do tempo, deixando nele um registro. Mas isso não é o suficiente. Não, não. É necessário bressonizar, ter o tal do “olhar fotográfico”, saber o que enquadrar e quando apertar o botão. Não sou bom nisso, mas guardo na memória as ações e sensações por trás do ato de se empunhar uma