Duas coisas incomodavam o Sr. K...: a primeira era o seu pássaro, uma calopsita, que há quatro dias estava tristonha, amuada no poleiro da gaiola, sem soltar um pio, tadinha da bichinha; a segunda, era o atraso na visita que receberia aquele dia – havia se passado mais de meia hora e nada de ela chegar.
Há exatamente noventa dias, o Sr.
K... recebeu a carta da Companhia de Desligamento. “Prezadíssimo Sr. K..., viemos
por meio desta informar que chegou a sua hora! Como o senhor bem sabe, novas
gerações precisam de espaço e conforto: somente assim nosso país continuará a
ser forte e relevante. Pedimos a gentileza de acertar todas as contas em pendência
(caso as tenha): lembramos que os novos inquilinos não arcarão com possíveis custos
após o seu desligamento, ficando a dívida para até a sua décima primeira
geração. Por favor, enumere na Ficha dos Afazeres, anexada, as atividades que
deseja serem realizadas após a sua partida do imóvel. Na esperança de encontrá-lo
na mais perfeita saúde para um bom desligamento, Sra. W... – Supervisora de
Mudanças, C.d.D.”.
O Sr. K... releu aquela carta
algumas vezes. Ele sabia que esse momento chegaria, mas ainda não estava
totalmente preparado. Ninguém, talvez, nunca estivesse. Durante toda a sua vida,
teve de inalar, religiosamente, diariamente, a substância da máquina Deckard.
Ele acordava, se sentava na cama, pegava a máquina com as duas mãos e metia o
nariz nela, fungando o que tinha lá dentro. Era um tiro só, ploft!, e suas
narinas eram inundadas com o aroma do perfume de quem mais amava. Embora o
cheiro variasse para cada pessoa, a verdade é que a Deckard 1138 regulava tudo
dentro da cabeça de quem metia o nariz lá dentro. Era uma “máquina da
felicidade”, como a população costumava chamar. Bastava cheirar aquilo que o
dia ganhava novos contornos: as preocupações sumiam, a vida era vista por outra
perspectiva, mais leve e tranquila. A máquina era ligada à rede e, assim, todo
cidadão prestava contas ao governo. O Sr. K... sabia que, se ficasse um dia
sequer sem cheirar, aquilo iria para os registros e, em breve, a polícia
bateria à sua porta com uma escolta de enfermeiros. Um vizinho, inclusive,
passou por isso: foi arrastado aos gritos para fora do prédio e levado ao Centro
de Aperfeiçoamento: ali, colocavam alguma coisa dentro das pessoas para injetar
o pó de Deckard diretamente no cérebro, algo assim. A pessoa voltava feliz para
casa e permanecia assim até a hora de seu desligamento. O Sr. K... não queria
ser forçado a ser feliz, por isso, preferia, ele mesmo, inalar o que fosse necessário
para não ter problemas com as autoridades. Ele se sentia livre com isso, e
assim viveu.
Seu trabalho na colônia não era
muito diferente do que faziam em outros lugares. Saía de casa às sete. Pegava o
ônibus com os demais colegas. Chegava ao campo. Pegava suas ferramentas.
Punha-se a cavocar. Diziam que era um trabalho importante, que o governo queria
saber de quem viveu ali antes para poder falar que a terra era sua, algo assim.
Sr. K... nunca se preocupou com os detalhes, apenas se agachava e raspava a
terra, extraindo dela alguma coisa velha que só teria sentido para o pessoal do
alto escalão, que analisava aquilo tudo. Certa vez, Sr. K... achou um brinco
brilhante. Parecia algo que sua esposa gostaria. Ele o engoliu para não ser
encontrado na revista e, no dia seguinte, após uma boa limpeza, entregou à
mulher. Ela não ligou muito, é verdade. E isso teria feito o pobre coração do
Sr. K... se despedaçar se não fosse a cheirada no Deckard.
Foi a mesma situação no dia em que o
desligamento dela ocorreu. Era uma manhã de outono, ou inverno. A carta já
havia chegado com três meses de antecedência e a Sra. K... apenas disse que os
jovens tinham de prosperar, que sua partida significava algo maior. Isso foi
antes de baterem à porta, pois, na ocasião, ela chorou copiosamente na
despedida. Era o procedimento padrão. A partir do recebimento da carta, o
cidadão tinha sua máquina confiscada e precisava lidar com uma vida toda de
sentimentos felizes indo pelo ralo. Era um choque e tanto. Alguns não
aguentavam e chegavam a pular de suas varandas, o que era visto com desdém pela
população: “Esse aí era fraco” – diziam à boca miúda. A dor de ficar sem o pó
de Deckard era um momento de provação, quando você mostrava ao mundo que a sua
vida feliz era, de fato, feliz. Mas nem toda vida era assim...
O Sr. K... percebia isso agora, após
noventa dias sem a inalação. Vasculhou as fotos na gaveta e viu sua esposa no
casamento. Foi, realmente, um dia feliz? Será que aquilo que sentiu não era
apenas um efeito-Deckard? Ele adorava sentir as mãos de sua mulher e tocar o
rosto delicado dela. Passava os dedos em seus lábios brilhantes e recebia um
beijinho na ponta do polegar: “Você é maravilhoso” – ela dizia. Mas ele
realmente era? Será que seus dois filhos – obrigatórios pelo governo da colônia
– foram fruto de um amor ou apenas de uma cheirada boa? Já adultos, os rebentos
tiveram de se mudar para outro complexo e nunca mais podiam ter vínculos. Isso,
durante o uso do pó, era aceitável, mas tanto a Sra. K... como o Sr. K...
sentiam, agora, o efeito da solidão. Mais de uma vez, o Sr. K... chorou durante
a noite, relembrando a esposa e os filhos, vendo filmes de bons tempos em sua
cabeça. Aquilo doía demais.
Para contornar um pouco o
desligamento da esposa, há dois anos o Sr. K... comprara uma calopsita. Era bem
tagarela e ativa. Ela comia os biscoitos que lhe eram dados e falava alguns
palavrões que haviam sido ensinados. Quando o Sr. K... teve sua máquina
confiscada, a ave sentiu a mudança no dono, ficando cada vez mais cabisbaixa. O
Sr. K... até tentou mudar a ração e comprar alguns brinquedos novos, mas tudo
foi em vão. Parecia que ela sabia que teria novos donos em breve e isso a
atormentava. Ela recebia carinho, mas ficava quietinha, já sentindo o luto que logo
viria. Os dias foram passando e a preocupação do Sr. K... apenas aumentava. Chamou
um veterinário, mas ele disse que nada podia fazer, já que só era
especializado em cães e gatos. “Droga, eu deveria ter adotado um gato” – pensou
o Sr. K..., mas em voz baixa, para não magoar o passarinho.
Agora o Sr. K... estava sentado na
sala olhando para o relógio digital acima da porta de entrada. Trinta minutos
de atraso. A ansiedade era grande, e ele teria dado um braço para poder dar uma
cheirada que fosse: isso traria calmaria. Já estava quase indo pegar a carta no
quarto para ler novamente e ver se a data estava correta quando o interfone
tocou. “Tá, podem subir”. Em setenta e oito segundos ouviu a campainha tocar.
Um casal, vestido de azul, estava prostrado. “Entrem”. Entraram. “Sentem-se”.
Sentaram. “Fiquem à vontade”. Ficaram. O olhar medroso do Sr. K... passava do
homem para a mulher enquanto eles mexiam no computador portátil cheio de fios
que estava na mesa de centro da sala. Foi requisitado ao Sr. K... a Ficha dos
Afazeres e que relaxasse na poltrona, dobrando as mangas da camisa. Espetaram
alguma coisa na veia do Sr. K... que doeu bastante, mas ele aguentou. Grudaram
alguns eletrodos que saiam do computador em seu peito e cabeça. A mulher leu a
cláusula de desligamento, dizendo que o Sr. K... deixaria de existir naquele mundo
para que o espaço do apartamento fosse ocupado por um casal jovem, que traria
prosperidade à nação. Ele acenou, concordando. Olhou para a sua calopsita, que retribuiu
o olhar choroso. No instante seguinte, sentiu seu corpo tremer e a ave sumir.
O Sr. K... abriu os olhos e viu a
Sra. K... parada diante de si. Ela estava tão linda como ele se lembrava. Ele apenas
disse “me desculpe pelos meus erros, meu anjo”, e segurou a mão dela. Ali não
havia lugar para a tristeza, o ar parecia repleto de pós de Deckard. O Sr. e a
Sra. K... foram de mãos dadas para a sua casa no topo da colina. Sabiam que, um
dia, seus filhos também chegariam.
“Ele pediu para os inquilinos novos cuidarem da calopsita” – disse o homem.
“Só isso? É tudo o que está na Ficha dos Afazeres dele?” – respondeu a mulher.
“Sim, só. Sujeitinho estranho, né?”
“Eles sempre têm esses pedidos meio nada a ver quando chega a hora do desligamento”.
“Pois é. Você liga para a Central de Coleta de Corpos ou eu ligo?”
“Pode deixar que eu ligo. Mas vamos almoçar antes, estou morta de fome”.
“A gente pode deixar o corpo aqui sem dar baixa no sistema?”.
“Não esquenta. Depois a gente faz isso. Vamos comer. Ele é só mais um maldito androide mesmo”.