O primo nunca foi uma pessoa muito fácil. Desde criança, sempre foi aquele primo chato, que implica com tudo e nada está bom. A gente jogava bola na rua e ele sempre arrumava confusão nos gols. Era um pouco irritante. Acho que ele não gostava muito de ter de ir com o tio e a tia nas visitas. Queria ficar sozinho a maior parte do tempo, rabiscando seus cadernos e falando com quem não existia.
Eu sei que toda criança faz isso. Falar com os brinquedos. Primo tinha alguns bonecos e ficava horas ali, ajoelhado na frente do sofá ou na beira da cama, conversando com eles. Às vezes, eu participava também. Na minha mochila, sempre carregava o boneco do príncipe Adam, a versão “sem graça” do He-Man. Não me pergunte o porquê. Acho que eu sempre gostei de coisas “realistas”. O príncipe era apenas uma pessoa normal, sabe? Ele só virava outra coisa quando evocava os poderes de Grayskull: aí ficava fortão, com aquela roupa estranha que eu nunca fui muito fã. Mas, para o primo, aquele era o grande momento. Ele adorava o He-Man justamente por representar algo fictício, uma coisa que não poderia ser concebida no mundo em que vivíamos.
O tempo passou e a gente foi se afastando. A adolescência traz aquela rebeldia de renegar o convívio e, assim, quase não nos víamos mais: raramente havia alguma festa em que todos os primos iam, e ele quase não aparecia em nenhuma. Mas eu prestava atenção nas conversas da mãe com a tia e, sempre, ele se tornava o assunto. Não havia problemas na escola, ele tirava notas altas. Tampouco problemas de brigas ou algo do tipo. Mas a tia se preocupava com o primo passando muito tempo sozinho. Não saía com os amigos, ficava trancado no quarto. Por vezes, tinha algumas atitudes difíceis, como passar dias sem falar ou comer. Eu entendia que a tia pagava um médico para cuidar dele, conversar com ele. “Ajeitar a cabeça”, sabe? Eu me sentia um pouco mal ouvindo isso porque era um primo que havia tido muito contato quando criança. Era estranho saber que todo mundo na família o taxava de “doente”.
Quase já não ouvia mais falar em seu nome quando me tornei adulto. A sua memória foi um tanto varrida de minha cabeça, e eu simplesmente fazia o que todo adulto faz: trabalhar e fingir que as coisas estão bem. Mas esse, infelizmente, não foi o caso para o primo. Eu sabia que em alguns momentos ele havia sido internado, que tomava um monte de remédios controlados, e que minha tia – agora já sem o meu falecido tio – carregava o triste fardo de ter de cuidar de um filho adulto com problemas psicológicos. Não consigo imaginar a dor que é para uma mãe ou um pai ver o filho sofrendo assim. O senso comum é que os pais vivem para ver os filhos felizes, bem de vida, procriando feito coelhos para gerar netos: isso, geralmente, é tido como “sucesso”. Mas não para o meu primo... Ele continuava em seu próprio mundo, dando um sentido para a sua vida que nós, comumente, achamos errado. Hoje eu sei que o julguei erroneamente também. Vi o primo pelos filtros dos meus olhos, quando deveria ter tentado enxergá-lo pela sua visão.
A verdade é que ele sofria bastante. E eu só sei disso porque fui eu quem encontrou seus cadernos, suas páginas jogadas debaixo da cama quando minha tia me pediu para arrumar o cômodo. Ela não conseguiria fazer isso. E eu entendo: o primo perdeu a luta não contra si mesmo, mas contra a gente. Só lembro do meu telefone tocando pela manhã, dizendo que o primo foi encontrado enforcado no quarto. Não posso dizer que foi uma surpresa para ninguém da família, mas isso não amenizou o choque de todos. Foi o primeiro caso de suicídio entre a gente. E como deve acontecer na maioria desses casos, buscamos entender o que foi que se passou pela cabeça do morto. Como eu disse, encontrei sua papelada, e nela havia muitos desenhos, rabiscos e palavras. Palavras coerentes, tenho de admitir. Havia uma série de “aforismos”. Deles, pude compreender que o primo sofria por não conseguir se adaptar ao que nós queríamos. Não era fraqueza dele: era incapacidade mesmo. Ele não conseguia enxergar sentido em tudo isso que chamamos de “vida”. Para ele, as coisas não tinham significado, eram apenas existentes. E, infelizmente, isso sempre o atormentou. Ao pensar a vida dessa maneira, entrou em um círculo vicioso de culpa: enquanto o “mundo lá fora” (nas palavras dele) seguia dia após dia, ele não se encaixava nessa rotina diária, e era atormentado pela noção de que, ao não se enquadrar, causava tristeza nas pessoas ao seu redor.
Mas ele, em si, não era triste. Não pelo que pude entender dos textos. Ele era feliz à sua maneira. O primo buscava a solitude, não a solidão. Ele gostava de ficar sozinho, mas não de ser sozinho. Infelizmente, a sua visão de mundo acabou por se tornar “errada” em sua mente e, também, na de quem estava ao seu lado. E o primo nunca esteve errado... Somente era diferente. E a gente devia ter entendido isso. O primo era alguém, como eu disse, que preferia a ficção à realidade. E eu não tinha o direito de julgá-lo.
Junto aos seus textos, estavam algumas caixas de sapato. Abri uma por uma, escavando suas memórias. Tive de parar e retomar o fôlego quando, em uma delas, encontrei aquele velho boneco do He-Man: junto a ele, estava o meu Adam que, um dia, eu havia esquecido lá e nunca me dado conta, pelo jeito. Eu me senti justamente como o príncipe que evocava Grayskull: um ser comum, quase covarde. O meu primo, no fim, sempre foi o He-Man: ele teve uma força que talvez eu jamais tenha.