O pai tinha
aquele jeito calado. Austero. Principalmente na frente de estranhos. Só falava
o essencial e, às vezes, aquelas poucas palavras machucavam muito: lembro do
mano chorando quando ouviu um dia o pai falando ao professor que talvez ele não
tivesse nascido para estudar, que seria sempre burro. Pai era o oposto da
estupidez. Acho que nunca conheci alguém que gostasse tanto dos livros. Ele
deixava a gente brincando na sala e se enfiava no quarto para ter sossego com
suas páginas. Eram livros amarelados do tempo, com cheiro de vó. Eu achava
estranho aquilo: um homem vivendo onde a gente vivia e lendo tanto.
Aos domingos, depois da missa, o
pai comprava pipoca doce pra mim e meu irmão. Sempre gostei daquele sabor. E
adorava ficar com os dedos manchados de vermelho – eu me sentia um ser de outro
mundo, igual aos que via nos gibis dos primos. A mãe acompanhava a gente até a
casa da vó enquanto o pai seguia seu rumo. “Deixe ele” – a mãe dizia quando
perguntávamos. “Tem o mundo dele” – e apontava para a própria cabeça. Nós
ficávamos ali para o almoço, já tendo comido a sobremesa, e voltávamos ao final
da tarde, antes que a rua ficasse escura demais. Embora pequeno, nessas horas
eu me sentia um homem grande: segurava a mão da mãe e do mano e vinha sempre
com alguns passos à frente – iria protegê-los de qualquer perigo.
Chegando em casa, só tinha tempo de ver o pai guardando
a viola no armário. Nunca havia escutado ele tocando. Sempre quando ouvia o
portão rangendo denunciando a nossa volta, o pai parava e guardava o
instrumento que ganhara do vô. Era estranho que não quisesse que ouvíssemos:
talvez tivesse vergonha. Aí, quando a escuridão tomava conta do céu, a gente se
reunia na sala para o pai ler alguma coisa. Mas ele não lia para nós. Era um
momento de silêncio absurdo: mano e eu ficávamos rabiscando deitados ao pé do
sofá enquanto a mãe costurava alguma coisa. Eu só escutava nossas respirações,
com medo de que algum barulho pudesse fazer o pai se desconcentrar e,
consequentemente, nos dar aquele olhar de reprimenda. Assim iam embora os
domingos: quietos, entediantes, com sabor avermelhado.
Uma vez o pai estava no trabalho
e mano e eu perdemos aula por conta de uma febre que só atacou a gente. A mãe
trouxe a benzedeira para nos curar. Ela fez lá a reza dela, botando um medo
danado na gente. Eu não entendia nada do que ela dizia, mas o timbre de sua voz
era assustador. Aquela dona ficava alguns minutos passando umas plantas em
nossas caras com um aroma que nunca soube identificar. Uma vez, sem querer, eu
ri, e quando a benzedeira foi embora, apanhei da mãe: “Não tire sarro de Deus” –
ela dizia ao me dar as cintadas que doíam mais na alma do que no corpo. Dessa
vez, contudo, mano e eu ficamos quietinhos, sabendo que uma hora aquela tortura
acabaria. Quando ela deixou as plantas e reza de lado, ficamos os dois sentados
no sofá enquanto elas iam tomar café na cozinha.
“Até hoje não sei o que viu
nele, fiínha”.
“Ele é um homem bom. Aprecio ele
cuidar de mim e dos meninos”.
“Mas isso é o bastante? Um homem
e uma mulher têm de se gostar muito...”
“E eu gosto dele. Vocês têm ideia
errada sobre ele. Só porque é quieto, julgam”.
“Ele vive no mundo dele, fiínha.
Você sabe disso. Esses livros, fiínha... não é certo um homem feito ler tanto.
A gente lê quando criança, pra aprender as letras...”
“Ele é curioso. Existe algo
dentro dele que vai além disso tudo aqui”.
E assim seguiu aquela conversa
que, na época, mano e eu não entendemos nada. Alguns meses depois, mãe foi
acometida de uma doença no estômago e não teve nenhuma benzedeira que conseguiu
salvá-la. O silêncio em casa, aos domingos, ficou ensurdecedor.
Pai, mano e eu vivemos da melhor
forma que um grupo de homens conseguia viver naquela época: aguentando todas as
dores que a vida foi jogando na gente. Eu me formei na escola e arrumei emprego
na cidade trabalhando na mercearia. O caminho era bem longo, mas logo que
fiquei maior de idade, e já com um cargo melhor, me mudei de vez para uma casa
modesta ali perto do trabalho, deixando meu irmão adolescente com o pai.
Mais um tempo se passou até que foi
a vez de meu irmão nos deixar. Até hoje não sei quem foi o responsável, mas o
mano morreu de briga no meio da estrada. Era algo relacionado à moça que ele
namorava, eu acho. Eu tive de ir reconhecer o corpo dele com o corte de faca.
Foi difícil: ver meu mano, quem eu segurava a mão quando criança, deitado
naquela cama de aço sem se mexer é uma imagem que jamais esquecerei. O seu enterro,
como tudo naquele lugar, foi simples. O pai, já sofrendo da saúde, foi
arrastando as pernas como pôde até o caixão do mano para lhe prestar as últimas
homenagens. Eu não vi o pai chorar. Nem dizer nada. Ele só ficou parado ali,
com os olhos perdidos em algo que, acredito, só ele conseguia enxergar.
Deixamos o mano dormindo para sempre ao lado da mãe e voltamos para casa.
Eu quis passar alguns dias na casa do pai antes de regressar à cidade. Aquela casa, que antes parecera tão grande quando criança, agora se tornara minúscula. Cuidei do pai durante esses dias, já que ele nem desejava mais comer. Aquele homem tão forte e estudioso que eu conhecia estava se apagando nas memórias presentes em cada lugar de nossa casa. No domingo, deixei o pai dormindo e fui à missa de sétimo dia do mano. Recebi ali todas as condolências e palavras de apoio que sempre dão aos que perdem alguém. O senhor que vendia a pipoca doce há muito havia falecido, mas seu filho tomara o seu posto. Comprei dois pacotes e tomei o rumo de casa.
Caminhando os últimos metros até o portão, escutei o som baixinho da viola saindo pela janela. Parei de andar e fiquei ali do lado de fora, quieto. Pela primeira vez na vida, ouvi meu pai tocando a viola. Era um som lindo, triste, repleto de dor. Depois de alguns instantes, abri o portão da maneira mais barulhenta possível, para o pai saber que eu havia chegado. Para minha surpresa, o som da viola continuou: ele não fora guardá-la no armário. Entrei devagar em casa e fui até o quarto do pai. Ele continuava tocando.
“Pai?” – eu disse baixinho. “Eu trouxe pipoca para o senhor” – e deixei ali ao lado dele, na cama. O pai, então, parou de tocar e deitou a viola no colo. Pegou o saco de pipoca doce e levou algumas à boca, lambendo os dedos vermelhos. “Era a preferida do seu mano” – disse ele. “Eu sei, pai. É a minha preferida também”.
“Eu sempre quis entender o que
se passava. Por isso eu lia tanto”.
“O senhor é a pessoa que mais
gosta de ler que já conheci na vida, pai”.
“Mas... eu nunca encontrei a
resposta. Eu procurei tanto, filho... Sua mãe ralhava comigo. O povo daqui
sempre me achou maluco”.
“Resposta para o quê, pai?”
“Eu não sei... Eu nunca soube
qual era a pergunta. Mas nunca me conformei que a vida fosse só isso. Eu
trabalhei, casei com sua mãe, tive vocês, e agora eles se foram. Será que a
vida, no fim, é apenas isso?” – seus lábios tremiam.
“Esse ‘apenas’ é tudo o que eu
herdei, pai. Se hoje estou aqui, é ‘apenas’ por tudo o que o senhor fez pela
mãe, pelo mano e por mim. Em breve o senhor vai ser vô, pai. Eu queria ter
contado antes, mas a sina do mano não deixou...”
O pai, então, me olhou e vi em
seus olhos duas represas que nunca antes havia presenciado na vida. Ele tentou
secar o canto do olho e o manchou com seu dedo avermelhado de pipoca. Eu sentei
ao lado dele na cama e segurei seu rosto entre as mãos, limpando aquela mancha
de sua face, sentindo as águas daquelas represas escorrendo entre meus dedos
que tremiam.
“Ela é sua agora. Que seja de
meu neto um dia” – pai falou me entregando a viola pela cintura. Eu a peguei e
pude sentir meus dedos, molhados pelas lágrimas de meu pai, deslizando pelas
cordas gastas.
Hoje, aos domingos depois da
missa, minha esposa, meu filho e eu nos sentamos na sala a fim de ouvirmos o
som da viola. Meu filho recebeu o nome do meu mano. Quero que ele se orgulhe
disso. Eu me sento ao lado dele e o ensino a empunhar e tocar os ponteios na
viola. Meu pai nunca me ensinou, ele esteve absorto na grande questão que lhe
trouxe dor até o último dia de existência: qual o sentido disso tudo?
Eu não penso sobre isso. Apenas vejo minha esposa e meu moleque e penso que, neles, está o meu mundo inteirinho.
Eu sempre amei você, pai.