Hoje a gente se viu.
Fazia o quê? Quinze, vinte anos que não lhe visitava? Sei que fui sem avisar. Quase
não achei sua casa, ela está bem diferente de como me lembrava. Talvez mais alta,
creio. Um pouco mais suja, certeza, mas isso não é culpa sua. Nunca foi. O
importante é que lhe encontrei e pude conversar. Eu estava precisando. Muito. E
agora você sabe o porquê.
As coisas não andam fáceis. Não
só para mim, claro, mas... Só posso ser responsável por mim mesmo. Sabe, se não
fosse essa situação em que a gente mal pode andar pela rua, provavelmente eu
iria resolver as coisas de outro modo. Não iria lhe visitar. Não lhe daria esse
desgosto, acho. Nem me sentiria humilhado por isso. Eu caminharia para longe,
no meio das pessoas, e pararia em algum banco, sentando-me e criando histórias
para quem passasse por ali ao mesmo tempo em que beberia algo forte para minha
cabeça parar de pensar um pouco. Eu faria isso. E teria sido melhor do que lhe
ver. Mas eu só pude pensar em você na hora e minhas pernas me levaram até a sua
casa.
Eu queria, primeiro, desabafar.
Depois, consertar uma falha minha que há anos me atormenta. Tive sorte de não
ter mais ninguém por perto: embora, há muito custo, eu tenha aprendido a
chorar, jamais me permitiria fazer isso na frente de estranhos. Eu agradeço por
você me acolher nesse momento. E fico ainda mais agradecido por você não ter me
tocado na hora, pois isso faria com que eu desmoronasse. Venho carregando tanto
peso nos últimos tempos que beira ao insuportável. Não sei que desgraça existe
dentro de mim que me mantém em pé, mesmo quando queria apenas me deitar e deixar
tudo para trás. Sinto que fracassei em tudo, como lhe disse, e que isso me
envergonha de tal modo que, há algum tempo, já não tenho mais contato com as
pessoas. Já não saio mais. Já não vejo meus amigos. Estou desaparecendo aos
poucos, sumindo na minha imensa sensação de não pertencimento mais a esse
mundo. O mais estranho é que isso conforta ao invés de machucar. E, como
expliquei a você hoje, não era para ser assim.
Você sabe que a amei. Faz tempo,
é verdade. Eu era muito novo, mas já sofria de algumas ilusões que me pregam
peças até hoje: a maior, talvez, seja a de colocar na balança o meu peso
equivalendo ao peso que dou aos outros. Eu não sou tão importante assim. A
vida, desde que nos separamos, tem me mostrado isso; porém, pareço incapaz de
lutar contra aquilo que já se tornou um estigma em mim. Talvez você tenha se
decepcionado ao ouvir isso. Sem problemas: eu também fiquei, e fico.
Provavelmente eu também não tinha o mesmo valor que você teve para mim. A gente
discutiu alguns dias antes do término. Enquanto você viajava, eu pensei no quão
idiota era essa situação. E lhe expliquei, hoje, que, na véspera de seu
retorno, eu havia comprado uma rosa para lhe dar. Apenas uma: era o dinheiro
que eu tinha na época. Ela ficou no copo com água durante aquela madrugada
toda. E eu nunca pude lhe entregar.
Por isso fui lhe visitar hoje.
Antes de chegar à sua casa, passei na floricultura ali perto e comprei a rosa
que lhe devia. Apenas uma. Simbólica. Para cumprir aquilo que eu devia ter
realizado há muitos anos. Não pude notar se você gostou. Nunca saberei se você
sorriu ou se ficou emocionada. Esse foi mais um erro que cometi: eu deveria ter
lhe dado a flor muito antes de sua viagem. Eu queria muito acreditar que
carrego algum tipo de maldição por causa disso, que você me assombra para que
ninguém mais possa me achar importante a ponto de querer passar tempo comigo.
Mas sei que não é verdade. É tudo culpa minha. E a flor que lhe dei hoje foi
apenas um atestado de incompetência.
Hoje eu limpei seu nome na placa
e tentei arrancar os matos que cresciam entre as divisórias das gavetas. Fiz o
melhor que pude. Como sempre. Mas nunca é suficiente. Deixei a rosa para você,
mas você não pode mais segurá-la.