Acorda. Levanta. Sente o cheiro de terra molhada. Choveu essa madrugada? Nem percebi, talvez sim. Olha para trás. Emaranhado de panos, pernas e cabelos. Deitada está. Feliz? Difícil saber. Torçamos para que sim. Unhas coloridas descansam entre flores estampadas já desbotadas. É só um sonho. É apenas mais um sonho.
Prepara o café. Cheiro bom. Gosto amargo. Por que insiste nisso? Não
sabemos. Senta à mesa. Corta o pão com as mãos. Mastiga. Gole de café. Mastiga.
Engole. Olha o relógio na parede. Apesar de tudo, ele não parou. Gostaria? Provavelmente,
sim. O violão está ali no canto da sala. Não tocou mais. As coisas vão perdendo
o sentido. Talvez nunca tenham tido. Mas é assim mesmo.
Ela ainda dorme. Não irá acordá-la com barulhos. Dia de descanso. Pega
papel, pincel, pena. Rabisca. Moça sorridente. Merece sempre ser assim.
Torçamos para que seja. Derrama água sobre as rugas amareladas. Esfrega cerdas
na tinta. Toca levemente no papel. Temos um braço, uma perna, um corpo, cabelos
quentes. É como tudo naquele momento. Sem forma definida. Manchado. Confuso. Uma
hora fará sentido. Mas não agora.
Deixa o papel secando. Queria ter ânimo. Tantas coisas para fazer. Tantas
cobranças. Incertezas. Tristezas. Isso não tem cura. Não vai ter. Mão manchadas
de tinta. Vai ao banheiro. Liga a torneira. Escorre o resto. Água doce e
salgada misturadas. Lá se vai o azul cobalto imitando aquele dia. Nada disso
tem sentido. Concordo.
Ela desperta. Senta na cama. Pernas roçando. Alça caída. Cabelos repelidos.
Ainda perfumados. Olhos de sono. Bocejo jeitoso. Sorriso tímido. Não é como na
aquarela. Muito melhor. Faz sentido. Levanta. Caminha. Tecido marcando. É
linda. O café a espera. A pintura já secou. Tatuagem à vista. Esqueceu esse
detalhe. Agora não dá mais. Sentada à mesa. Abraço por trás dos ombros. Beijo
no pescoço. Bochecha. Têmpora. Mais quente que a caneca. Sabor bom.
Acorda. Levanta. Sente o cheiro de pano molhado.