Pular para o conteúdo principal

Olho mágico

    Seu cunhado já dormia no outro quarto. O ronco chegava aos seus ouvidos, compassando a triste melodia da madrugada. O velho problema para dormir... há anos enfrentava o tratamento contra a insônia também. Contudo, esse começara quando novo, pouco depois de conquistado o emprego atual. Sua esposa reclamava, dizia que ele precisava abandonar o cargo, trazer segurança para a sua família. Deixaria de lado, sim. Na verdade, pensava em fazê-lo quando o bebê nascesse. O fundo de garantia lhes daria uns meses de sossego: tempo para arranjar outra ocupação. Mas depois daquele dia sua vontade minguou, carregando-o para um futuro rotineiro.

    Sentiu a bexiga cheia e levantou-se para se aliviar. Do banheiro, foi à cozinha: dentro da geladeira, vitimada pelo fim do mês, avistou e agarrou o resto da caixa de leite. Devolveu a embalagem vazia à prateleira do mundo branco, apagou a luz e quis voltar para o quarto. Porém, ao caminhar, notou a claridade do hall por entre as frestas da porta. Ouviu estalos secos. A curiosidade foi maior: fechando a pálpebra esquerda, encostou o rosto próximo ao olho mágico. Embora perto, um casal apareceu ao longe, minúsculo sob a mira do invento humano. Vizinhos do apartamento da frente. Jovens. E, transparecia, apaixonados.

    Ela se pendurava em seu pescoço, trazendo sua nuca entre as mãos. Beijando com os olhos fechados. Por ser menor, o homem tinha de se curvar. Esfregavam-se. Sem notar se alguém observava. Mas não faziam nada de mais. Apenas beijos e abraços. Longos beijos e abraços. Provavelmente o homem podia sentir a respiração dela, o vai e vem do tórax, o hálito entrecortado graças ao nervosismo, à excitação. Colocou-a de costas, mordiscando seu pescoço por trás, empurrando-a com a cintura. Bons minutos naquela paixão foram vistos pelo observador através da lente mágica.

    Com uma grande pitada de inveja, desejou que aquela fosse a sua esposa. Ou então que ela saltasse do elevador, desse boa noite ao casal e entrasse em casa, ardente para fazer o mesmo com ele. As noites eram sempre tão boas entre os dois... Jantavam, terminavam de limpar o que precisava, e iam para a cama. A televisão posta no canto superior direito era pequena, mas servia para entretê-los.  Ela se deitava com a cabeça sobre o braço dele. “Braços fortes do meu maridão” – dizia. Assistiam a um filme. Os de terror eram os prediletos, pois, com o susto, a mulher virava o rosto para ele, como se quisesse se esconder da visão triste da cena. Ele ria, gostava de ter essa sensação de proteção. Quando anunciou a gravidez, foi na cama também. Um filme qualquer passava. Ela estava mais quieta do que o normal. Havia ansiedade em seus olhos vermelhos de lágrimas. “O que houve?”. Então ela puxou a calejada mão do amante e a depositou sobre seu ventre. E não precisou falar mais nada... Ele a olhou surpreso, e pôs-se a chorar feito criança. Um pranto de extrema felicidade. Ajoelhou-se na cama e encostou o ouvido em sua barriga. “Olá? Sou eu, filho, é o papai!”. “Pode ser uma menina” – ela deixou escapulir junto a gotas de salivas. Ele acenou. Naquele momento, tanto fazia. Queria que fosse surpresa o sexo da criança. Naquela noite, dormiu com o ouvido no ventre da mulher, após esgotar-se com o choro. Fora a última vez que chorara de felicidade.

    Quando o casal entrou em seu apartamento, afastou-se do olho mágico e voltou ao quarto vazio. Ele havia mudado bastante. Estava mais sujo, sem a pintura de outrora. O televisor não lhe trazia mais nada de bom, por isso, raramente o ligava. Ainda sob a fanfarra que seu cunhado maestrava, puxou o lençol sobre si. Queria dormir um pouco. Logo teria de acordar para trabalhar.

Postagens mais visitadas deste blog

Caveira safada

Era aquela maldita caveira novamente.               - Ei, puto, chegue cá!             E ela veio, meio cambaleante, com seu ritmado compasso de fêmur. Caveira mexicana. Sorria com os amarelados-pontos-temerosos-de-dentistas. Trazia um charuto entre os finos dedos da ossatura direita.               - Mas o que faz aqui novamente, peste?               - Sabe como é, caveirando... Invejando os que têm carne.             - Porra, esse povo deve tomar um susto, hein!             - Nem me fale. Não sei porque tanto medo. Uma caveirinha tão simpática como eu.             Coçou as costelas.             - O que é isso aí?             - Isso o que?             - Preso aí, velho.             - Presente para usted.             E retirou uma grande garrafa de rum.             - Conseguiu onde?             - Dei sorte. Geralmente nessa época, só encontro aguardente sem graça. Isso eu roubei de macumba de rico.             Ele cuspiu.             - Cacete, macumba?!

A filha

Quando a mana foi embora, pai pareceu ressentido. Talvez por ser filha mulher, ter crescido agarrada a ele. O laço entre eles se intensificou depois que a mãe morreu. Eu sempre fui quieto, sem saber demonstrar direito o que sinto. A mana, ao contrário, era luz: acordava e dava bom dia, gostava de abraçar, ria à toa. Ela alegrava a casa. Por ser mais velha, chegou aquele momento na vida em que foi atrás dos sonhos. Passou em uma universidade longe e foi morar lá. O pai sabia que era para o bem dela, que ela devia lutar por uma vida melhor. Ele entendeu, mas se entristeceu. O tempo foi passando e ela só conseguia nos visitar por algumas poucas semanas durante o ano. Isso não diminuiu a dor do pai. Mas ele entendia, e nunca chorava na frente dela durante as despedidas.      Certo dia, acordei mais cedo que o normal e peguei o pai escutando as modas em seu radinho de pilha enquanto via os antigos álbuns de fotos que guardava no fundo da estante. Pareceu não perceber minha presença, e con

Um dia de campo

Tive um excelente professor de fotografia na pós. Ele era especializado em fotojornalismo, havia viajado o mundo, suas fotos eram impecáveis. Em suas aulas, analisávamos os fotógrafos mais famosos e me lembro muito bem de ele dizendo, sobre Cartier-Bresson, que aquele francês tinha “olhar fotográfico”, que não importava a máquina que carregava em mãos, ele conseguia, em um instante, congelar no tempo uma poesia. Sabia o exato momento em que devia pressionar o obturador. Eu tive um excelente professor de fotografia na pós. Mas nunca aprendi nada com as aulas.            Posso ter tido o conhecimento básico de como operar uma câmera, regular a abertura, a exposição, a luz. A fotografia, afinal, é a manipulação do tempo, deixando nele um registro. Mas isso não é o suficiente. Não, não. É necessário bressonizar, ter o tal do “olhar fotográfico”, saber o que enquadrar e quando apertar o botão. Não sou bom nisso, mas guardo na memória as ações e sensações por trás do ato de se empunhar uma