Entre minha casa e a escola havia sete quarteirões. Sei bem disso e nunca
vou esquecer: eu caminhava, todas as manhãs, os sete quarteirões, sentindo o
peso inexorável da má vontade infantil em acordar cedo e ser arrastado, sob
chuva ou sol, pela linear rua de horizonte inalcançável. E lá aprendia que, as
orações escritas anteriormente, eram coordenadas, subordinadas, encaralhadas...
Não que desgostasse da escola: ali eu li Astérix pela primeira vez,
aprendi que alguns respeitos a gente impõe pela força, e também tive minha(s)
primeira(s) paixonite(s). Isso, aliás, já rendeu pano pra manga na terapia.
Qual era o nome dela?
“Sabe, acho que o nome dela era Vanessa. Sim, dancei com ela na festa
junina do pré”.
(Olhar neutro psicanalítico). E o que você pensa sobre ter dançado com
ela?
“Eu era o mais gordo da turma. Talvez ela tenha tido pena, sei lá”.
(O olhar neutro psicanalítico continua). Talvez ela tenha querido.
(Após levar dois ou três segundos para entender que não havia vocativo na
fala dela). “Mmm... Talvez. Mas sempre foi assim. Isso que lhe contei sempre
foi por causa de alguma menina, de alguma mulher. Sou todo fodido da cabeça”.
(Pequeno riso neutro psicanalítico). Não é errado querer ter alguém
que possa complementar.
“Eu tento absolutamente tudo. Nada dá certo, não consigo despertar algo
duradouro nas pessoas, fazer com que gostem e queiram ficar comigo”.
E ficava nisso. Não vou me alongar nesse assunto para não lhe entediar:
você já faz muito só em ler o que escrevo e não recebe por isso. Obrigado.
O que importava, de verdade, no caminho entre minha casa e a escola, era
o que havia um quarteirão antes de eu chegar naquele lugar que estabeleceria em
mim paixões não correspondidas responsáveis por pagar uma parte das contas da
minha psicanalista anos depois. Estou falando dela, a Loja de Doces.
Sim. Ela ficava ali, brindando a minha vida de tortura com sabores de tudo
quanto é tipo. Sendo criança, a loja parecia imensa. Sendo início dos anos 90,
não havia qualquer tipo de proibição à hipnose de menores de idade com
propagandas de produtos que fazem mal: eu, como um Bukowski putanheiro, dava
vários tragos no cigarro de chocolate e virava as garrafinhas com licor dentro.
E meus pais pagavam por minha boemia indiretamente, não tendo ciência de que o
dinheiro para o enroladinho de presunto e queijo da cantina era gasto com
álcool e cáries. Eu tive uma infância feliz, não posso reclamar (excetuando-se,
é claro, a Vanessa, a Lu, a Carla etc.).
Nessa loja de doces, um deles me despertava maior atenção. O meu favorito
de todos os tempos depois do pudim de leite condensado: o doce de abóbora em
formato de coração. Sim, senhoras e senhores, tenho certeza absoluta de que Pandora
deixou escapar esse doce apenas com o intuito de me atormentar. Eu olhava
aquilo na caixa ali, paradinho dentro do balcão de vidro, e minha mão
automaticamente percorria o zíper externo de minha mochila em busca das moedas.
Ah, como era boa a sensação! Deixava o metal e pegava o doce. Com minhas
mãozinhas gorduchinhas, levava a parte do topo do coração (que até hoje chamo
de “bundinha”) para a minha boca e dava uma mordida que acabava com metade do
doce ali mesmo, numa morte limpa e humana. Eu era o executor dos doces de
abóbora. E ainda hoje me orgulho disso.
Os anos fluíram, já não moro mais no mesmo lugar. Contudo, recentemente
tive a oportunidade de passar por ali perto e me lembrei da loja. Para a minha
felicidade, ela ainda existe. As filhas tocam o negócio que o pai deixou. O
estabelecimento já não parece mais tão grande: é incrível como nossa percepção
de tamanho muda conforme envelhecemos. Os balcões de doces, contudo, são os
mesmos! A mesma madeira antiga com vidro quase esverdeado! A mesma sensação de
entrar em uma doceria e esperar alguém cantar “Candy Man”, oferecendo-me uma
barra Wonka! Foi mágico, confesso. Emocionante. Bati o olho em meu Graal e logo
mandei descer dois. Com a dificuldade de uma coluna com lombalgia crônica que
me faz querer morrer todos os dias, tirei o dinheiro de dentro da minha mochila
e deixei perto da caixa registradora.
Agradeci, olhei mais uma vez para dentro da loja, suspirei, saí, mordi; e
sorri. Sequer pensei que ali perto, anos antes, eu aprendera orações
coordenadas. Ou melhor: tentara.