Pular para o conteúdo principal

Marca-passo

Apenas uma pequena faixa de luz entrava ali na sala. Uma teimosa claridade de uma cortina mal fechada da varanda. Pendurou as chaves na parede e tirou os sapatos: mais tarde teria de lavá-los, mas não agora. Não nesse momento.

Deixou a claridade incomodar seus olhos cansados de uma madrugada agitada, sem dormir. As coisas já não andavam bem. Agora, pareciam ainda piores. Desabotoou a camisa e afrouxou o cinto. Seguiu para o banheiro. Tirou a roupa e deixou no canto, com as lembranças das lágrimas presas na quina dos olhos. Ligou o chuveiro e a água quente escorreu por sua nuca, descendo pelas costas antes de forçar o pescoço para trás e molhar os cabelos despenteados.

As lembranças ali eram todas brancas. Luzes brancas. Corredores brancos. Gente chorando. Gente gritando. Gente gemendo. Todas as reações abafadas por máscaras de pano duplo sob luzes brancas em corredores compridos brancos. Lavou as mãos e lembrou do toque da pele dela. “Vai ficar tudo bem, filho. Vou ficar bem” – disse ela entre lábios adormecidos. Sim, ficaria, ele tinha certeza. Mas isso não amenizava a dor. Ele, que nunca gostou de estar vivo, trocaria de lugar se pudesse. Não era justo que alguém cheio de vida sofresse. Mas Deus não existe – ele lembrou. E a pontada de dor no ombro direito ao levar as mãos aos cabelos para ensaboá-los o fez pensar nisso novamente. O esforço durante a madrugada para carregar alguém inconsciente é monstruoso. Tiramos forças de qualquer lugar. O importante é ajudar a pessoa na hora. E assim ele o fez. Que seu problema de coluna esperasse: um dia talvez cuidaria dele. Era mesquinho pensar em si mesmo quando algo urgente acontecera.

Alguns dias antes, perdera o emprego. E agora teria de comprar mais remédios quando ela tivesse alta. E isso o deixou sem dormir direito por quase duas semanas. O tempo corria, parecia que abrira a janela do carro e ria dele, zombando das coisas ruins. No dia da visita, ela acariciava sua mão e pedia desculpas por atrapalhar o seu trabalho. “Você dá aula, filho, não precisa vir aqui todos os dias”. Ele não teve coragem de dizer a ela que não dava mais aulas, que seus projetos tinham sido cancelados, que não teria mais dinheiro por algum tempo. Achou melhor nada dizer, afinal, ela já estava ali por causa do coração. Isso arrancou mais um pedaço dele. Um pedaço que ele deixou largado na calçada do hospital antes de entrar no carro.

Chegava em casa, se limpava, ia para o quarto. Ali, ficava olhando pela janela, pensando nas coisas que iriam acontecer dali em diante. Ele desejava, mais do que tudo, que naquele momento tivesse alguém consigo. Alguém que ligasse e dissesse: “Amor, vai ficar tudo bem”. Alguém que, no fim de semana, pudesse abraçá-lo, beijá-lo, e permanecesse ali, para que ele entendesse que as dores iriam diminuir alguma hora. Mas é claro que isso não aconteceria. Todos os momentos difíceis foram de solidão. Ele tinha de erguer a cabeça e continuar. Sozinho. Recebendo cada soco que a vida lhe desse e costurando as feridas com as próprias mãos. Não foi por falta de querer ter alguém ao lado. Ou de tentar. Talvez ele simplesmente fosse uma pessoa ruim, que não merecesse esse tipo de apoio. Mas isso não significava que ele não teria de continuar seguindo em frente, só: ele não tinha escolha.

As luzes brancas, depois de alguns dias, tornaram-se amarelas. Já não ia mais ver corredores repletos de dor. Agora começava a etapa de convalescência. Não a dele, pois as suas feridas eram muito mais profundas. 

Postagens mais visitadas deste blog

Caveira safada

Era aquela maldita caveira novamente.               - Ei, puto, chegue cá!             E ela veio, meio cambaleante, com seu ritmado compasso de fêmur. Caveira mexicana. Sorria com os amarelados-pontos-temerosos-de-dentistas. Trazia um charuto entre os finos dedos da ossatura direita.               - Mas o que faz aqui novamente, peste?               - Sabe como é, caveirando... Invejando os que têm carne.             - Porra, esse povo deve tomar um susto, hein!             - Nem me fale. Não sei porque tanto medo. Uma caveirinha tão simpática como eu.             Coçou as costelas.             - O que é isso aí?             - Isso o que?             - Preso aí, velho.             - Presente para usted.             E retirou uma grande garrafa de rum.             - Conseguiu onde?             - Dei sorte. Geralmente nessa época, só encontro aguardente sem graça. Isso eu roubei de macumba de rico.             Ele cuspiu.             - Cacete, macumba?!

A filha

Quando a mana foi embora, pai pareceu ressentido. Talvez por ser filha mulher, ter crescido agarrada a ele. O laço entre eles se intensificou depois que a mãe morreu. Eu sempre fui quieto, sem saber demonstrar direito o que sinto. A mana, ao contrário, era luz: acordava e dava bom dia, gostava de abraçar, ria à toa. Ela alegrava a casa. Por ser mais velha, chegou aquele momento na vida em que foi atrás dos sonhos. Passou em uma universidade longe e foi morar lá. O pai sabia que era para o bem dela, que ela devia lutar por uma vida melhor. Ele entendeu, mas se entristeceu. O tempo foi passando e ela só conseguia nos visitar por algumas poucas semanas durante o ano. Isso não diminuiu a dor do pai. Mas ele entendia, e nunca chorava na frente dela durante as despedidas.      Certo dia, acordei mais cedo que o normal e peguei o pai escutando as modas em seu radinho de pilha enquanto via os antigos álbuns de fotos que guardava no fundo da estante. Pareceu não perceber minha presença, e con

Um dia de campo

Tive um excelente professor de fotografia na pós. Ele era especializado em fotojornalismo, havia viajado o mundo, suas fotos eram impecáveis. Em suas aulas, analisávamos os fotógrafos mais famosos e me lembro muito bem de ele dizendo, sobre Cartier-Bresson, que aquele francês tinha “olhar fotográfico”, que não importava a máquina que carregava em mãos, ele conseguia, em um instante, congelar no tempo uma poesia. Sabia o exato momento em que devia pressionar o obturador. Eu tive um excelente professor de fotografia na pós. Mas nunca aprendi nada com as aulas.            Posso ter tido o conhecimento básico de como operar uma câmera, regular a abertura, a exposição, a luz. A fotografia, afinal, é a manipulação do tempo, deixando nele um registro. Mas isso não é o suficiente. Não, não. É necessário bressonizar, ter o tal do “olhar fotográfico”, saber o que enquadrar e quando apertar o botão. Não sou bom nisso, mas guardo na memória as ações e sensações por trás do ato de se empunhar uma