Pular para o conteúdo principal

Todos os Santos

 

O relógio não dava sossego. Minuto a minuto, as horas escorregavam refletidas na parede do quarto escuro. O rádio relógio, herança de seu pai, parecia lembrá-la do que o velho sempre dizia: “Tenho orgulho de você M. C., minha filha, mas é preciso ter a cabeça no lugar”. E isso era o que ela necessitava fazer nesse momento: permitir que os pensamentos angustiantes fossem para longe da cidade. Fácil não era. Não naquela noite. Não depois do que acontecera...

                Rockford Hills. Lugar de gente rica, claro. Ela passara uma boa parte da infância por ali, perambulando com a amiga que conhecera em uma das idas à praia durante o verão. A amiga morava em uma das casas mais abastadas do bairro. Mas M.C. só vira da rua: o pai da garota nunca permitiu que pessoas da zona leste entrassem na residência. O trato com a filha era: pobres não passam do portão. A moça não parecia se importar com a proibição paterna, mas isso, no fundo, machucava o coração de M.C.. Às vezes, as duas entravam em algum mercado pequeno local e realizavam pequenos furtos: a amiga, rica, distraia o vendedor enquanto M.C. guardava cerveja e batatas fritas debaixo do moletom. Se algum vendedor desconfiasse de algo, rapidamente a moça invocada o nome de seu pai, a quem, muito provavelmente, o dono da loja devia favores ou aluguéis atrasados.

                Pequenos delitos migraram para coisas mais sérias. O que antes eram cervejas, agora eram notas de dólares. Isso, porém, só acontecia em lojas com comerciantes mais jovens, do agrado da amiga: ela puxava o rapaz de canto e, enquanto permanecia com a mão dentro da calça dele, M. C. se encarregava de pegar o dinheiro da caixa registradora. Para a amiga, esse dinheiro não significava nada – apenas mais uma aventura. Porém, para M.C., o dinheiro era algo que faria com que o pai doente pudesse se alimentar melhor naquela noite. O velho sofria há anos de uma doença nos ossos, que não o permitia se locomover com facilidade. Isso fez com que deixasse de trabalhar, ficando a renda da família restrita ao que M.C. ganhava como mecânica de motos no bairro Leste da cidade, além da verba mensal que o irmão mais, inspetor na LAPD, enviava. Era a única contribuição dele: não visitava o pai, não se importava com M. C. Na verdade, ele tinha vergonha do seu passado pobre no bairro latino violento, e, mais ainda, da ficha criminal da irmã por pequenos delitos – não pegava bem ser da polícia e ter uma irmã envolvida com crimes.

                A vida de M.C. era um emaranhado de momentos de euforia com depressão. Sentia-se bem ao lado da amiga, mas triste ao chegar em casa e ver o pai naquelas condições. O salário como mecânica era baixo, mas lhe rendeu conhecimento suficiente para saber se virar com tudo o que tinha um motor e rodas: às vezes, conseguia dinheiro extra consertando e vendendo motos usadas de colegas. Algumas motos davam trabalho para limpar as manchas, mas essa era a realidade do lado Leste: ninguém ali era santo, todos sangravam. Durante as noites, ela gostava de sair pelas ruas pilotando a sua moto, a “sua menina”, como gostava de dizer. Nesses momentos, M.C. era completamente livre das amarras do mundo: livre das preocupações por dinheiro; livre das noites mal dormidas cuidando do pai; livre do olhar esnobe dos ricos que abundavam Rockford... Pilotava até Vinewood e ali, do alto da colina, avistava a cidade. Imaginava como seria bom se pudesse sumir daquele lugar. Deixar tudo para trás e recomeçar. Porém, isso não aconteceria tão cedo em sua vida: não após aquela noite de tanta dor.

                Chegando em casa, M.C. estacionou a moto na garagem e entrou. A T.V. estava fora do canal, chiando a plenos pulmões. M.C. achou estranho aquilo, pois o pai sempre desligava o televisor antes de dormir no sofá. Aproximando-se, ela reparou que seu pai estava respirando com dificuldade. Rapidamente, chamou a ambulância e acompanhou o velho até o hospital. O quadro clínico dele era grave, e somente com o tratamento adequado, cirúrgico, o seu coração voltaria ao normal. O problema nisso tudo? As contas do hospital e o salário de M.C. não batiam. O irmão também não teria condições de ajudar com a quantia absurdamente alta pedida pelo hospital. M.C. foi obrigada a levar o pai de volta para casa apenas com remédios paliativos, que trariam o mínimo conforto ao velho antes do inevitável.

                M.C. pensou na amizade de longa data. Sua amiga precisava ajudar. Ela era rica. O pai possuía quase metade da cidade: não negariam auxílio em um momento desses. Mal o dia clareou, M.C. pegou a moto e tomou rumo para Rockford. Ligou para a amiga e ela apareceu no portão. Explicou, quase chorando, a situação. Disse que o pai dependia da operação para viver, que alguns milhares de dólares seriam responsáveis por fazê-lo sentir-se bem novamente. Ela pagaria de volta, claro. Trabalharia dois turnos na oficina. Venderia algumas motos. Ela iria pagar com juros, até. A amiga ouviu tudo calada. Com ar impassível, disse apenas que não seria possível, que o pai jamais concordaria. M.C. suplicou, pediu para falar com o pai da amiga para explicar tudo. A moça ignorou o pedido. Desesperada, M.C. tentou entrar à força pelo portão mas os dois seguranças barraram seu caminho. Aos prantos, M.C. gritou pelo nome da amiga enquanto ela voltava para dentro de casa. A porta se fechou. O mundo, naquele instante, pareceu sufocá-la.

                Poucos dias se passaram, e o pai só piorava. Ele havia pedido para ela instalar o rádio relógio ali perto do sofá, para que pudesse ver as horas dos programas que passariam na T.V.. Ela assim o fez e saiu para a rua. Pegou a moto e pilotou sem rumo certo. Começava a anoitecer quando cruzou as ruas de Mirror Park: por elas, transeuntes despreocupados exibiam suas vidas boas, enquanto lojas de departamentos brilhavam com suas vitrines repletas de produtos. O posto de gasolina desse lugar era enorme, e ela talvez só tenha reparado nisso pela primeira vez na vida quando, naquele momento, parou ali para abastecer. Havia dois caixas eletrônicos do lado de fora. Bastante frequentados. Os usuários pareciam ignorar o fato de que estavam sacando grandes quantias de dinheiro ao ar livre antes de retornar para seus carros de luxo. M.C. ponderou um pouco. Esperou para ver se havia policiamento por ali, mas estava tudo tranquilo. Puxou o capuz de sua blusa de moletom sobre a cabeça e seguiu para a moça que estava encostada na máquina sacando dinheiro. Com a mão dentro do bolso, M.C. simulou uma arma e encostou no corpo da vítima. Pediu silêncio e foi atendida. Trêmula, a mulher estendeu a mão com algumas notas, algo em torno de oitocentos dólares, e as entregou. Quando M.C. se virava para voltar correndo para a moto, sentiu uma pancada forte na nuca e seu mundo, novamente, pareceu lhe sufocar: o marido da mulher vira a cena de longe e correu para acudi-la.

                M.C. acordou em uma cela. A dor de cabeça era gigantesca. As demais mulheres na cela olhavam M.C. com um misto de prazer e desafio. Ela ficou em um canto do espaço, pensando em seu pai, sozinho, em casa.

                Passados três dias, a notícia de sua liberdade chegou: alguém havia dado um jeito de tirá-la da cadeia. Seu irmão mostrara-se útil. Ele não foi visitá-la nenhuma vez enquanto esteve presa, mas ao menos havia burlado o sistema. Contudo, o tempo havia cobrado um preço alto demais.

                Chegando em casa naquela manhã, M.C. correu para a sala e viu a T.V. ligada. Porém, o seu velho pai já não tinha mais o interesse pelos programas em seu olhar: estavam vidrados, perdidos ao longe. Seus lábios estavam roxos e sua pele fria. M.C. fechou os olhos do pai e chorou até perder as forças.

                Naquela noite, após o funeral, algo havia mudado nela. Já não tinha mais o sorriso fácil de antes. A dor tomara um espaço muito grande dentro de si. Deparou-se com pensamentos sombrios. Tentou afugentá-los, mas eram fortes demais: alguém teria de pagar por sua dor. E a única pessoa que deveria pagar era a sua amiga – por causa dela, o pai agora estava enterrado para sempre. Tomada pelo ódio irracional, M.C. vasculhou o armário do pai e encontrou o seu velho revólver. Carregou a arma e colocou na cintura, cobrindo com o moletom. Pegou a moto e partiu para Rockford.

                Chegando ao endereço da amiga, cobriu a cabeça com o capuz e, com muito esforço, pulou a parte mais baixa do muro, longe da entrada principal com seguranças. Ricos que se sentem seguros não trancam portas – ela pensou. Assim, facilmente, entrou na casa e subiu a escada em busca dos quartos. Sabia que a amiga era filha única. Olhou o primeiro quarto e ali estava o casal dormindo, os pais da moça. No final do corredor, porém, encontrou a amiga dormindo de barriga pra cima em sua cama confortável. Sobre seu peito, estava o seu gato caramelo. Era justamente ali que M.C. gostaria de dar o tiro que ceifaria aquela pessoa responsável pela morte de seu pai. Contudo, ela gostava muito de gatos, e isso a fez pensar se deveria atirar ou não na, outrora, amiga. O tempo passava e seu dedo no gatilho começava a vacilar... Por fim, pensou melhor e percebeu que, um tiro, acordaria a casa toda e ela voltaria para a cadeia. Olhou ao redor e viu o estojo de maquiagens da amiga sobre a penteadeira. Ali, naquele lugar, ela se maquiava para esconder do mundo a face cruel que trazia por baixo das bases e batons. M.C. olhou bem no escuro e encontrou o lápis delineador. Voltou para frente da cama e observou mais uma vez a mulher dormindo. Respirou fundo. Em um movimento rápido, tapou a boca da amiga com uma das mãos enquanto cravou o lápis na garganta dela com a outra. A moça apenas teve tempo de abrir os olhos e ver quem estava a matando com várias perfurações no pescoço. Logo o sangue começou a sufocá-la e o seu olhar de pavor deixou de existir. Respirando novamente, M.C. olhou para as mãos ensanguentadas com horror, mas com prazer de ter feito justiça. Recuperou a consciência e começou a sair do quarto quando ouviu um miado baixinho: o gato caramelo estava lambendo os dedos da dona sem vida. M.C. voltou para a cama e o tomou em seu colo. Encostou a porta e saiu da casa como entrou: sorrateiramente.

                Em casa, M.C. lavou-se e foi deitar. O relógio não dava sossego. Minuto a minuto, as horas escorregavam refletidas na parede do quarto escuro. O rádio relógio, herança de seu pai, parecia lembrá-la do que o velho sempre dizia: “Tenho orgulho de você M. C., minha filha, mas é preciso ter a cabeça no lugar”. E isso era o que ela necessitava fazer nesse momento: permitir que os pensamentos angustiantes fossem para longe da cidade. Fácil não era. Não naquela noite. Não depois do que acontecera...

    Mas aquela, dali em diante, seria a sua vida.

Postagens mais visitadas deste blog

Caveira safada

Era aquela maldita caveira novamente.               - Ei, puto, chegue cá!             E ela veio, meio cambaleante, com seu ritmado compasso de fêmur. Caveira mexicana. Sorria com os amarelados-pontos-temerosos-de-dentistas. Trazia um charuto entre os finos dedos da ossatura direita.               - Mas o que faz aqui novamente, peste?               - Sabe como é, caveirando... Invejando os que têm carne.             - Porra, esse povo deve tomar um susto, hein!             - Nem me fale. Não sei porque tanto medo. Uma caveirinha tão simpática como eu.             Coçou as costelas.             - O que é isso aí?             - Isso o que?             - Preso aí, velho.             - Presente para usted.             E retirou uma grande garrafa de rum.             - Conseguiu onde?             - Dei sorte. Geralmente nessa época, só encontro aguardente sem graça. Isso eu roubei de macumba de rico.             Ele cuspiu.             - Cacete, macumba?!

A filha

Quando a mana foi embora, pai pareceu ressentido. Talvez por ser filha mulher, ter crescido agarrada a ele. O laço entre eles se intensificou depois que a mãe morreu. Eu sempre fui quieto, sem saber demonstrar direito o que sinto. A mana, ao contrário, era luz: acordava e dava bom dia, gostava de abraçar, ria à toa. Ela alegrava a casa. Por ser mais velha, chegou aquele momento na vida em que foi atrás dos sonhos. Passou em uma universidade longe e foi morar lá. O pai sabia que era para o bem dela, que ela devia lutar por uma vida melhor. Ele entendeu, mas se entristeceu. O tempo foi passando e ela só conseguia nos visitar por algumas poucas semanas durante o ano. Isso não diminuiu a dor do pai. Mas ele entendia, e nunca chorava na frente dela durante as despedidas.      Certo dia, acordei mais cedo que o normal e peguei o pai escutando as modas em seu radinho de pilha enquanto via os antigos álbuns de fotos que guardava no fundo da estante. Pareceu não perceber minha presença, e con

Um dia de campo

Tive um excelente professor de fotografia na pós. Ele era especializado em fotojornalismo, havia viajado o mundo, suas fotos eram impecáveis. Em suas aulas, analisávamos os fotógrafos mais famosos e me lembro muito bem de ele dizendo, sobre Cartier-Bresson, que aquele francês tinha “olhar fotográfico”, que não importava a máquina que carregava em mãos, ele conseguia, em um instante, congelar no tempo uma poesia. Sabia o exato momento em que devia pressionar o obturador. Eu tive um excelente professor de fotografia na pós. Mas nunca aprendi nada com as aulas.            Posso ter tido o conhecimento básico de como operar uma câmera, regular a abertura, a exposição, a luz. A fotografia, afinal, é a manipulação do tempo, deixando nele um registro. Mas isso não é o suficiente. Não, não. É necessário bressonizar, ter o tal do “olhar fotográfico”, saber o que enquadrar e quando apertar o botão. Não sou bom nisso, mas guardo na memória as ações e sensações por trás do ato de se empunhar uma