“Aqui consta que
já é a terceira vez que procura a nossa clínica” – os olhos da mulher são
brilhantes, lembram dois vagalumes perdidos na beira do rio. “Foram cento e
vinte... Não: cento e quarenta anos de atendimento. O seu seguro cobre um
invólucro novo, claro, mas podemos aumentar a sua franquia caso deseje manter o
mesmo e apenas modificar a UCP. Fica a seu critério. Apenas lembro que
suicídios, ou tentativas de suicídio, não são cobertos na franquia: oferecemos
tratamento de humor, porém, os custos de reparo serão seus”. Aceno com a cabeça.
“O que vai ser? Mudança total ou modificação da UCP?”. Mudança total. Chega
dessa merda.
“O senhor conhece o procedimento.
Teremos de conversar antes de termos sua decisão final”. Não podemos
simplesmente pular essa parte? “É impossível. Estou aqui para ajudar...”. Tudo
bem, então. “Por favor, sente-se. Isso, fique à vontade. Confortável?”. Aham. “Então...
Porque está nos procurando pela terceira vez? Como posso ajudá-lo?”. Você é a
terceira pessoa que procuro, sabe? Digo, a terceira pessoa diferente que vejo
aqui na clínica. As outras duas vezes foram diferentes. A primeira vez, uma
doutora quis implantar homeopatia. Consegue imaginar isso? A porra de
homeopatia para tratar o defeito da UCP. Seria cômico se não fosse trágico... O
segundo? Pfff. O segundo parecia bom, quase me convenceu a não migrar de
invólucro, mas aí ele começou a falar de religião, que eu deveria seguir aquele
livro lá, e depois ainda veio com algumas ideias de que as mulheres tinham de
ser submissas aos homens. Eu não acredito em nada disso. A gente tem de ser
igual, porra. Eu quero alguém que seja igual, não uma pessoa para sempre me
dizer que estou certo. Eu quase sempre estou errado, talvez. É complicado
isso... Por isso migrei as duas últimas vezes. E o lance da franquia já me foi
ofertada da última vez: eu usei, arrumando briga: vocês não cobrem suicídio,
mas apanhar até desmaiar, isso, sim, está no contrato. Aliás, por que dizem
“suicídio”? Ninguém mais morre nessa merda. Se a gente tenta se matar, vocês
pegam a UCP e deixam no freezer até os créditos das nossas contas crescerem o
bastante para migrarem novamente. Isso é foda: nem morrer a gente consegue mais
nesse mundo. Tudo era melhor antes: as pessoas ficavam doentes, envelheciam,
morriam. Agora? Agora é tudo o de sempre: escolhem a gente no laboratório,
nascemos sem nenhuma doença, trabalhamos eternamente, e não temos o direito de
partir. Antes devia ser melhor...
“E o que o levou a procurar a
gente pela terceira vez?” Você sabe: quero me livrar de mim novamente. É por
isso que estou aqui. “O que incomoda?” Eu... Eu tenho tentado, sabe? Tenho
tentado colocar a cabeça no lugar. Tenho tentado trazer as coisas para o lado
racional. Mas é difícil. Algumas coisas dentro de mim parecem cíclicas, elas
têm ápices e vales, altos e baixos. Eu já não sei mais o que pensar de mim
mesmo. Acho que sou estragado. “Você não é. Alguma coisa está incomodando você
há muito tempo para estar aqui pela terceira vez. Arrisco a dizer que, se não
identificar isso, vai voltar uma quarta, quinta, sexta vez... Não terá fim
nunca. Jamais vai conseguir viver bem em seu invólucro”. É, eu sei... Mas, como
eu disse, é complicado, complexo. Eu tento observar a situação do lado de fora,
sabe? Tento sempre me ver a partir de um drone, e nessas horas eu consigo me
entender. O problema é que isso não dura para sempre: sempre volto pra mim. E o
“mim” é desgastante. Estou cansado dessa merda, desse ciclo. Sabe... Eu... eu vejo
coisas boas no mundo, seja ele qual for. Eu já fiz a Terapia de Carroll, eu já
me vi nas realidades alternativas, mas isso não muda o fato que estou preso a
essa aqui. “E como foi quando visitou essas realidades? O que viu? O que
sentiu?” Bem, eu não pude ver todas, claro: dizem que são infinitas, mas meus
créditos me deixaram observar umas cinco ou seis realidades. Quando plugam a
máquina em você... Caralho, aquilo te puxa pelo estômago, sabe? Em um momento
você está ali deitado e no outro – boom – sai de dentro da parede vendo a si
mesmo em uma outra realidade. Mas isso não é o mais foda. O difícil é quando as
sinapses se misturam e você sente a si mesmo. Digo, não é ruim quando as coisas
são tristes, mas quando são alegres... Você começa a se perguntar: Por que eu
não nasci nessa realidade? A primeira que vi eu estava feliz, porra. Ali
era tudo perfeito. Ali eu dei certo e tinha uma esposa, sei lá. Ela gostava de
mim. Ela talvez fosse implantada, não sei. Mas o fato é que ela me amava, e eu
senti isso, sabe? Eu senti no beijo dela. Ela tinha olhos verdes, acho. E ali no
apartamento as coisas eram todas azuis, não sei porquê. Isso fazia um contraste
legal. Nessa realidade eu acho que me dei bem.
“E nas demais realidades que
visitou?”. Ah, elas variaram. Houve uma em que eu estava largado na cama de um
hospital. Isso eu achei interessante: essa realidade é bem diferente da nossa,
lá as pessoas ainda morrem. E eu estava morrendo, acho. Ou não. Eu estava mal,
isso é fato. Sentia falta de ar, era algo no coração. E nessa realidade eu
recebi várias visitas. E elas traziam presentes e uma das mulheres ali parecia
se importar muito comigo: ela dizia que sabia como era estar ali no hospital,
que já sentira o que eu sentia. Ela era linda, sabe? Porra, esse é o problema
com as minhas realidades todas: eu sempre acho as mulheres lindas. Não sei o
que é isso? Eu troquei de olhos aos 13 anos, e isso talvez tenha fodido tudo,
porque sempre vejo beleza. Às vezes, queria que isso não existisse, porque
machuca, sabe? Em todas essas realidades, todas essas mulheres, tão lindas... Eu...
sei lá. “Ver beleza nas pessoas é algo que provavelmente muitas pessoas iriam
querer, não deveria se culpar por isso. Mais alguma realidade que quer trazer
aqui?” Uma última. Nela, eu me sentia muito mal. Novamente havia uma mulher
nela, claro. E ela era linda, claro. Tinha uns rabiscos na pele, algumas
palavras escritas, não consegui ler direito. E eu me sentia meio triste por
saber que ela já não gostava mais de mim, acho. Na verdade, ela dizia que se
arrependia. A gente não pode fazer com que nos amem, eu entendo. Mas doeu saber
disso. O estranho é que depois de alguns minutos lá na realidade, uma parte de
mim foi se acostumando, entendendo as coisas naquela visão de alguém de fora. E
percebi que eu não era culpado de nada. Nem ela, talvez. Mas que havia
projeções. Eu tinha projetado minhas inseguranças nela. E ela, as raivas em
mim. Foi difícil ver e sentir tudo aquilo, mas eu ficava me distraindo tendo de
abrir a porta para o gato: ele queria sair e, quando saía, queria voltar. E eu
fiquei fazendo isso um tempão, sabe? E eu tenho alergia a gatos, porra. Sei lá,
foi estranho...
“E na realidade de agora? Como
se sente?”. Acho que eu já deixei meio implícito, né? Está tudo meio merda. “Será
mesmo? Os registros aqui coletados de quem é mais próximo mostram o contrário”.
Esses registros aí são os que vocês usam para manter a personalidade, não é? Eu
sei que são positivos. E eu acho que existe algo de verdadeiro neles. Mas...
sei lá. “Aqui consta 98% de carinho na Escala Lacaniana, e...”. Vocês ainda
usam esses caras? Puta que pariu, estão parados no tempo mesmo... Olha, eu não
vim aqui para me enquadrar nas suas tabelas. “Tudo bem, esqueça a escala:
apenas quero dizer que as pessoas ao seu redor admiram muito você. Na verdade,
amam você. E isso é algo muito incomum nos clientes que nos procuram para mudança
total. Geralmente as pessoas mudam os invólucros para, de algum modo, se
tornarem mais chamativas e queridas”. O mundo vive de aparências mesmo. Isso é
foda. Eu entendo isso tudo o que você diz, mas o que posso fazer? Estou cansado
de ver minha cara. Eu tenho raiva a maior parte do tempo. Quero mudar. “A
mudança total vai apenas colocar você em outro invólucro”. É, eu sei. “Talvez
você devesse entender que não pode fugir de si mesmo. Você convive com você,
não importa qual invólucro seja. Não temos como mudar sua personalidade, apenas
migrá-la”. E o que sugere? “Você trouxe flores como objeto para desengatilhar as
sinapses na UCP após a mudança. Por que escolheu justamente flores?”. Eu gosto delas... Ao longo desses anos todos,
eu dei flores para quem amei. Mas uma das mulheres recusou um dia: isso faz um
bom tempo. E eu fiquei assim sem saber o que fazer. Guardar esse gosto dentro
de mim, e mesmo com novos invólucros, eu não consegui mais dar flores, sabe? Tenho
medo de que serão negadas novamente. “E nas demais realidades?”. Ah, nelas
sempre havia flores. Provavelmente era eu quem as dava. Talvez isso fizesse bem
para quem recebia, porque eu gosto de ver a pessoa feliz, sabe? Isso me deixa
bem. Eu gosto de segurar as mãos, de acariciar o rosto, de beijar os lábios, de
brincar mordendo as bochechas. Eu gosto disso. E acho que isso me estragou... “Talvez
seja justamente isso o que o torna especial nessa realidade agora também: não é
errado ser romântico. Não é errado assumir que você quer amar e ser amado. Não
deveria se envergonhar e mudar de invólucro para tentar fugir de algo que
sempre estará com você. As realidades alternativas mostraram isso: seja onde
for, sua UCP sempre vai ser assim. Você só precisa aprender a conviver dentro
de seu invólucro, respeitando a si mesmo, suas dores e desejos”.
E como faço isso, afinal?
“Imagine que alguém está lendo
os seus pensamentos”.