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Uma breve entrevista com o Sr. Incrível

 Ao longo de vários meses, tentei insistentemente marcar uma entrevista com o Sr. Incrível. Suas obrigações sempre tornavam o nosso contato difícil, e não era para menos: o Sr. Incrível esteve envolvido em muitas coisas, coordenando projetos e conversando com o público. Finalmente, um certo dia, recebo uma mensagem de alguém sem foto que dizia: “Desculpe a demora, podemos marcar um café amanhã?”. Não titubeei e respondi prontamente que estaria livre naquele dia. Na manhã seguinte, dirigi até o local estabelecido e cheguei dez minutos adiantados. Não para a minha surpresa, o Sr. Incrível já estava sentado me aguardando: a fama dele o precedia – uma pessoa sempre pontual (ou, na maioria dos casos, sempre adiantada). Aquele homem não percebeu minha chegada: estava olhando para o vazio, meio cabisbaixo. O primeiro pensamento que me veio à cabeça foi: “Ora, esse é o tal do ‘Sr. Incrível’? Por que parece desanimado?”. A sua atenção foi desviada quando encostei à mesa e dei bom dia. Seus olhos assustados saídos de um transe me fitaram por alguns instantes e vi alívio em sua face: talvez o Sr. Incrível estivesse preocupado que eu pudesse não comparecer? Não perguntei nada, apenas o cumprimentei e sentei. A atendente do café logo se aproximou com o menu. Demorei um ou dois minutos para escolher o meu café “espresso” (a cafeteria era italiana, afinal). A moça virou as costas e começou a partir quando indaguei se o Sr. Incrível não iria pedir algo também. “Eu já sei o que ele quer. Ele nunca muda” – ela me respondeu, meio com deboche. Enquanto ia aprontar o pedido, comecei a colocar meus materiais sobre a mesa, posicionando o gravador ao centro, e trazendo meu caderno de notas junto a minha mão. O Sr. Incrível não havia dito nada desde o “bom dia”, e isso estava me deixando desconfortável. Ele olhava o tampo da mesa fixamente, parecendo perdido em si mesmo. Aproveitei para reparar na camisa roxa de manga comprida dobrada nos cotovelos, cabelo preso e óculos por limpar do Sr. Incrível. Suas roupas nada diziam que, debaixo delas, estava ali alguém que eu admirava tanto. Mais alguns minutos de silêncio e a atendente voltou. Entregou-me meu café e, ao Sr. Incrível, depositou a oferenda de cappuccino. “Eu gosto muito de cappuccino, sabe?” – ele me disse com um leve sorriso quase infantil. Ele deu o primeiro gole e devolveu a xícara ao pires. “O que manda?” – me perguntou. A seguir, a transcrição de nossa conversa.

 

Primeiramente, você poderia contar um pouco sobre sua trajetória profissional?

Não há nada de extraordinário nela, você vai ver. Desde criança eu gostava de estudar, e levei isso para toda a minha vida. Estudei em escola pública o maior período, indo para a particular estudar ensino profissionalizante: foi ali que desenvolvi meus gostos por coisas eletrônicas. Terminado esse ensino, trabalhei um tempo na área, mas depois me vi querendo algo mais: eu carrego comigo essa maldição desde a infância – a de sempre querer algo mais. Então entrei na faculdade e lá conheci muita gente maravilhosa. Se não fossem por eles, hoje eu não estaria aqui. Não fiz nada sozinho, sabe? Sempre tive apoio dos outros, pessoas que confiaram em mim, que acreditaram em mim. Mesmo nos momentos mais difíceis...

 

Poderia falar sobre isso? Sabemos o que aconteceu naquela época, mas nunca ouvimos de você.

                Claro. A minha cabeça não andava bem. Eu estava cansado. E o meu “sempre querer mais” estava me afundando. Eu quis dar um fim a isso tudo um certo dia. E houve sangue. E houve choro. Na época eu tinha ainda mais problemas para enxergar o lado bom das coisas, sabe? Então eu me machuquei seriamente. Ao menos posso dizer que as drogas no hospital deixam a gente em outro mundo. Até hoje lembro de algumas alucinações. Isso é engraçado, na verdade. Mas a verdade é que, aquela vez, o estopim de tudo foi carência. Afetiva, digo. E isso me acompanha até hoje.

 

                Os olhos do Sr. Incrível começam a marejar. Eu dou um tempo e olho para o outro lado. Escuto um pigarro e volto a tempo de ver o Sr. Incrível beber mais um gole de seu cappuccino. Ele parece bem agora.

O senhor é conhecido por atuar em várias frentes: realiza sua pesquisa, coordena grupos e ainda é escritor. Como é ser “multitarefas”?

                Isso é bem fácil. Eu faço várias coisas, mas em nenhuma delas sou realmente bom! (ele ri). Eu tenho gostos variados, e tento exercitá-los. E isso não em torna diferente de ninguém, sabe? Eu apenas faço o que gosto, sem medo de ser ruim nisso. As pessoas deveriam pensar assim também: muitas vezes colocamos rótulos na gente que nos prejudica, que nos afasta do que gostamos – ou gostaríamos – de fazer. E olha que sou a pessoa que mais se rotula, mas, em alguns casos, eu tento lutar contra isso. Faço o que quero, e faço com amor. No fim, acho que é isso que mais falta nas pessoas: amarem.

 

E como é ser amado sendo o Sr. Incrível?

                Esse tipo de pergunta não leva a lugar algum, eu acho. Eu sou amado por meus amigos, minha família. Eu sei disso porque eles me falam isso. Mas eu nunca fui bom em retribuir, sabe? Não com palavras. Talvez nem com gestos. Nos últimos anos, tenho percebido que mais tenho machucado do que ajudado as pessoas que me são caras. E isso não é legal. Já passei por tratamentos para tentar entender melhor o que se passa dentro de mim, mas isso é uma luta diária. Contra mim, eu digo. Uma luta para que a minha obsessão em ajudar não me deixe cego para o fato de respeitar os desejos dos outros. Isso dói bastante, confesso. Mas é uma dor que é causada apenas por mim. Se eu melhorar isso, minha vida será melhor: eu irei me sentir menos mal com as situações horríveis que crio na minha própria vida. Mas não é fácil, não é...

 

                Começo a perceber que a pessoa do Sr. Incrível, aquela pela qual eu era apaixonado, que eu usava de parâmetro para força e perseverança, talvez tivesse me enganado esse tempo todo. Dentro de mim, comecei a sentir vergonha e, mais ainda, raiva. Ele não era quem eu imaginava. Tentei direcionar mais as minhas questões.

E porque você pensa isso tudo de si mesmo?

                Eu não sei... As pessoas dizem que sou isso, que sou aquilo, que sou “incrível”. Isso não é verdade. Uma hora ou outra, elas verão isso. Tal como você está vendo agora, mesmo que tentando disfarçar. Eu não sou incrível, eu não sou suficiente para mim mesmo, acho. O amor que sinto pelas coisas que faço, não é o mesmo que sinto por mim. Essa é a chave do problema, acredito: eu não consigo ver o que as pessoas dizem enxergar em mim. Não é falsa modéstia, não é vitimismo (nesse caso): é incapacidade. Pode ser algo físico? Não sei. Fiz exames e nunca acusou nada. Fraqueza, talvez? Eu também não sei: nunca fugi das consequências dos meus atos, ou virei as costas quando as pessoas – com razão – explodiram sobre mim, sobre o meu jeito destrutivo: isso, gosto de pensar, talvez seja uma força minha, não fraqueza.

 

Então, porque ‘Sr. Incrível’?

                Nunca me chamei assim. Nunca. Eu adoraria, de verdade. E eu luto dentro de mim para que um dia eu possa me olhar no espelho e, de fato, ser digno desse apelido. Mas eu consigo ver isso nas pessoas. E talvez seja exatamente isso que elas veem em mim, mas que não consigo enxergar, sabe? Na minha vida conheci muita gente que não prestou, muita gente ruim. Porém, a maioria das pessoas sempre foi boa. E as pessoas boas foram incríveis comigo. Como disse, eu não estaria aqui se não fosse por elas (e não me refiro apenas profissionalmente). Muita gente que me “bateu”, estendeu a mão para que eu levantasse: não passar a mão na cabeça de alguém também é um gesto de amor, de preocupação. De minha parte, eu me envergonho disso tudo, sabe? Mas não tenho outra opção a não ser aprender a lição e seguir adiante, tentando melhorar. Eu digo “tentar”, porque não é simples, e muitas vezes eu erro novamente. Eu sou empático, sei que a outra pessoa também está sofrendo na situação. E, principalmente, sei que essa situação seria evitada se eu fosse alguém melhor, alguém “incrível” também. No fim, eu diria que muita gente que conheço é incrível, mas que eu, definitivamente, não sou. Não ainda.

 

                Nessa hora, não sei mais o que sinto em relação ao Sr. Incrível.

Algum último recado aos que forem ler essa entrevista?

                Pedir desculpas já não adianta mais. Fiz isso várias vezes: perdeu o sentido. Apenas respondi suas questões com a maior clareza e sinceridade possível. Espero que as pessoas continuem sendo incríveis. E espero, um dia, poder me juntar a elas.

 

                O Sr. Incrível termina seu cappuccino e se despede de mim. Ele vai ao caixa enquanto guardo meus materiais na bolsa. Ele para na saída, respira fundo, e sai, perdendo-se na multidão da avenida mais movimentada da cidade. Ainda pensando na entrevista, chego ao balcão e pego a carteira. A atendente logo diz: “O senhor não precisa pagar, ele já acertou tudo”. Olho para ela e para a porta de saída. “Ele tem o coração muito bom, é incrível mesmo, não é?” – ela pergunta. Nada digo, apenas aceno com a cabeça e sigo meu caminho, pensando nos demônios que cada pessoa tem de exorcizar.

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