Acendeu o último
cigarro e amassou a embalagem do maço. Esqueci de comprar. De novo. Colocou o
isqueiro de volta sobre a mesa e observou os raios de luz que passavam pela
persiana deixando finos traços em seus braços. Anos antes, haviam marcas neles.
E o choro da mãe na sala enquanto era carregado contra a vontade pelos
paramédicos nunca deixou sua lembrança. Levou o cigarro aos lábios e sugou delicadamente
a fumaça para dentro da garganta. Seca. Expeliu a nuvem fedida diante dos olhos
e viu como se perderam em meio aos raios de sol. Engoliu a saliva e assoprou a
ponta do cigarro que perigava apagar. Depois observou a mão: ela começava a
tremer novamente. Eram espasmos contra a sua vontade, claro. Ele sabia que
devia ter ido ver isso há muito tempo, quando o médico pediu. Mas nunca se
importou de verdade. Não vale a pensa, sabe? Às vezes, não vale a pena. Eu
assumo o que vier. E ficou um tempo vendo os dedos tirando o cigarro aceso do
seu eixo principal. Fechou os olhos e sentiu o calor chegar ao rosto: já era
metade da manhã, e ele mal acordara.
Ficou mais um tempo ali, parado,
olhando o mundo vivendo do lado de fora. As pessoas não sabiam quem ele era.
Ele também não tinha ideia de quem elas podiam ser: cada vida ali passava da
esquerda para a direita, da direita para a esquerda, a pé, de carro, lenta,
apressada... Cada alma carregava os próprios pecados, alegrias e dores. A vida
é assim, dizem. Todos estamos sozinhos, de um jeito ou de outro. Até o fim.
Será que dói? Será que a gente percebe? Aquele dia das marcas nos braços, nos
pulsos, não senti nada: apenas tranquilidade. Se for assim, é bom. Mas não dá
pra ter certeza. O que doía, na verdade, era a vergonha de ter chegado àquele
ponto: talvez eu seja muito fraco mesmo. Ou será que doía a certeza de ter
falhado no objetivo principal? Talvez eu não estivesse aqui, sabe? E o cigarro
chegava a seu fim, trazendo ainda mais secura para a sua garganta. Jogou a guimba
no cinzeiro e apoiou a cabeça na mão direita, tentando afastar o mundo com os
olhos fechados.
Durou quase uma eternidade. Ou
talvez tenha durado uma fração de segundos, pois ele precisava daquilo que
aconteceria a seguir. Estava ainda pensando que algumas marcas nunca iriam
deixar de aparecer em sua pele quando sentiu dois braços ao redor de seu
pescoço, seu peito. Ainda sentado e de olhos fechados, sentiu os seios nus
roçando suas costas e aquilo esquentou seu coração e puxou para fora da memória
a cena do sangue escorrendo no banheiro anos atrás. “Bom dia” – veio sussurrado
em seu ouvido, em tom amoroso, feliz, quase de deboche. Um beijo em sua
bochecha. Uma leve mordida nela. Abriu os olhos. Porra, como eu dependo
disso... Ainda sem olhar para ela, apenas observando a luz amarela entrando
pela persiana, sentiu, novamente, o abraço. “Você errou novamente, amor”. Ela mostrou
o interior do braço esquerdo. Delicado. Suave. Perfumado apenas pelo corpo
dela. UPLCRA. Sim, estava errado. Errei de novo. Eu deveria ver isso, devo ter
alguma dislexia. Ela ria enquanto mostrava a palavra escrita perto de seu pulso
à caneta. Durante a noite ele escreveu nela. Não só essas palavras. Muitas
outras. Tenho uma dificuldade incrível em escrever numa folha em branco, mas o
seu corpo... Ela era a sua inspiração, o seu café, a sua paixão. Canta pra mim,
ó Musa. Ela virou a cadeira dele para si. Sentado, encostou a testa entre os
seios dela e beijou a palavra rabiscada ali. Ela acariciou seus cabelos. Ele levantou
os olhos e viu a mulher. Puta que pariu. Os olhos dela sorriam em conjunto com
os lábios. Eu não mereço. “Merece, sim. Para de falar isso, por favor”. Ele
prometia que iria parar, mas sua mente, e voz, o traíam repetidas vezes. Ela se
inclinou e beijou a sua boca. Mistura de cigarro com hálito matinal. Mas era
bom. Era. Bom. Sim. Era bom porque representava a conexão dos dois. Eu tenho
muita sorte, sabia? Ela terminou o beijo e segurou o rosto dele,
distanciando-se. Ali estava ela: despida de roupas, coberta de palavras. Ela
era o seu melhor poema, o seu conto mais impactante. “Sempre dá trabalho apagar
essa tinta” – ela riu. E o riso dela esquentou o coração dele. “Vou ali tomar
banho”. Vou preparar o café pra gente. Ele a observou saindo do quarto, a
mescla de nudez com azul de letras trêmulas, firmes, corretas e erradas.
Voltou a cadeira ao seu lugar de origem. O dia estava ainda mais claro agora. O sol já marcava que aquela tarde seria muito quente e ensolarada. Ele jogou o maço amassado no lixo. Passou a língua nos lábios. O gosto dela é maravilhoso. Viu novamente as pessoas caminhando. Anônimas. Os olhos ficaram marejados. Eram esses pequenos momentos que espantavam os fantasmas. Que faziam as coisas valerem a pena. Ouviu passos apressados caminhando em sua direção. “Esqueci de pegar a toalha” – ela riu. E o mundo ganhou cores. Ela já estava na porta novamente quando olhou para ele. Voltou. Pegou o seu rosto entre as mãos. “Eu te amo, sabia?”. Eu sei. “Volta pra mim” – e ela apontou uma frase que ele havia escrito em seu ombro: “Preciso de você”.