Pular para o conteúdo principal

Quadro

Branco. Imensidão branca. Muito tempo corria assim: no branco. Até que aquele quadro alvo tivesse algo para manchá-lo. Então notava as gotas. De gesso. No teto. Branco. Um teto que parecia eternamente disposto a reter suas lágrimas. Parecia um bolo coberto de suspiros, mas de cabeça para baixo. Deliciava-se com aquela cobertura. Vez e outra, a imagem sumia repentinamente: uma escuridão surgia do nada, cegando tudo, mas logo desaparecia. Mirava o branco. Naquela imensidão vinham imagens. Seus pensamentos espirrados na tela de forma desordenada. Vultos. Rostos. Sorrisos. Coloridos. Ela... Ela sorria. Aquele velho sorriso encantador. Os ombros nus. Amada. Ela lhe sorria e esticava os braços. Então, naquela pintura, viam-se as pontas de dedos brincando com o ar, como se quisessem agarrar as mãos vindas do teto. Um braço esticado. “Toca! Por favor!” Mas Ela era apenas feita de tinta de pensamento... sem carne. Quando se dava conta disso, aquela tela branca manchada ia escurecendo aos poucos, com a forma da mão lhe tapando o rosto. “Como dói!” E o peito arfava rapidamente. Um pranto puro. De criança. Dos que amam. Soluços. A vergonha de se chorar. A sorte de se estar sozinho. Aquele Deus maldito que ria. Aquela vida mais miserável do que a dos outros. “Por que eu?” Seu sofrimento único. O mundo continuava. O Sol surgia. A Lua ainda lhe trazia o sabor dos beijos. Quando voltava a ter a visão do teto, ele já não estava mais parado. Movimentava-se em ondas. Os olhos ardiam. Quando aquela tela branca tornava-se mais nítida, é porque sentia a morna lágrima escorregando pela colina de seu rosto. Mas logo os olhos se enchiam novamente. Branco. Imensidão branca... 

Postagens mais visitadas deste blog

Caveira safada

Era aquela maldita caveira novamente.               - Ei, puto, chegue cá!             E ela veio, meio cambaleante, com seu ritmado compasso de fêmur. Caveira mexicana. Sorria com os amarelados-pontos-temerosos-de-dentistas. Trazia um charuto entre os finos dedos da ossatura direita.               - Mas o que faz aqui novamente, peste?               - Sabe como é, caveirando... Invejando os que têm carne.             - Porra, esse povo deve tomar um susto, hein!             - Nem me fale. Não sei porque tanto medo. Uma caveirinha tão simpática como eu.             Coçou as costelas.             - O que é isso aí?             - Isso o que?             - Preso aí, velho.             - Presente para usted.             E retirou uma grande garrafa de rum.             - Conseguiu onde?             - Dei sorte. Geralmente nessa época, só encontro aguardente sem graça. Isso eu roubei de macumba de rico.             Ele cuspiu.             - Cacete, macumba?!

A filha

Quando a mana foi embora, pai pareceu ressentido. Talvez por ser filha mulher, ter crescido agarrada a ele. O laço entre eles se intensificou depois que a mãe morreu. Eu sempre fui quieto, sem saber demonstrar direito o que sinto. A mana, ao contrário, era luz: acordava e dava bom dia, gostava de abraçar, ria à toa. Ela alegrava a casa. Por ser mais velha, chegou aquele momento na vida em que foi atrás dos sonhos. Passou em uma universidade longe e foi morar lá. O pai sabia que era para o bem dela, que ela devia lutar por uma vida melhor. Ele entendeu, mas se entristeceu. O tempo foi passando e ela só conseguia nos visitar por algumas poucas semanas durante o ano. Isso não diminuiu a dor do pai. Mas ele entendia, e nunca chorava na frente dela durante as despedidas.      Certo dia, acordei mais cedo que o normal e peguei o pai escutando as modas em seu radinho de pilha enquanto via os antigos álbuns de fotos que guardava no fundo da estante. Pareceu não perceber minha presença, e con

Um dia de campo

Tive um excelente professor de fotografia na pós. Ele era especializado em fotojornalismo, havia viajado o mundo, suas fotos eram impecáveis. Em suas aulas, analisávamos os fotógrafos mais famosos e me lembro muito bem de ele dizendo, sobre Cartier-Bresson, que aquele francês tinha “olhar fotográfico”, que não importava a máquina que carregava em mãos, ele conseguia, em um instante, congelar no tempo uma poesia. Sabia o exato momento em que devia pressionar o obturador. Eu tive um excelente professor de fotografia na pós. Mas nunca aprendi nada com as aulas.            Posso ter tido o conhecimento básico de como operar uma câmera, regular a abertura, a exposição, a luz. A fotografia, afinal, é a manipulação do tempo, deixando nele um registro. Mas isso não é o suficiente. Não, não. É necessário bressonizar, ter o tal do “olhar fotográfico”, saber o que enquadrar e quando apertar o botão. Não sou bom nisso, mas guardo na memória as ações e sensações por trás do ato de se empunhar uma