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então seu corpo trajado em branco e azul deslizou pelo recinto avermelhado de
madeira antiga. Ela se dirigiu ao balcão enquanto ele se sentava de costas para
o mundo em uma das cadeiras que casavam com a mesa escura, também ela de
madeira.
Os cantos das unhas dele estavam
doloridos e ficou com vergonha de levar os dedos à boca para mordiscar
pequeninas peles lascadas semitransparentes. Com o canto dos olhos, viu que ela
se aproximava e se ajeitou no encosto. Ela senta e os detalhes rosas de sua
camiseta branca parecem destacados entre o cenário que está ao fundo, repleto
de caixas de bombons vermelhas e brilhantes.
Ele aperta seus próprios dedos com as mãos que se escondem debaixo da
mesa e a observa ajeitar a bolsa no colo azulado escuro. Ela parece bem – ele
pensa. Minúsculas gotículas de suor que a franja de seus cabelos negros tentam
esconder no calor daquela tarde perdem totalmente a função de supostamente
fazê-la se distrair a fim de secá-las. Não é necessário. Logo aparece a
atendente da loja e traz na bandeja prateada duas xícaras brancas
especializadas em refletir a luz do teto.
“Quer chantilly?” – ela o encara de
modo delicioso.
Ele responde que não sabe, responde
que se você acha que fica bom eu também vou gostar, é claro. Ela some de seu
campo de visão novamente. Mas por poucos segundos. Volta e logo em seguida aparece
uma pessoa trazendo dois pequenos recipientes cerâmicos com chantilly. Parecem
montanhas nevadas deformadas – ele pensa – mas tem vergonha de dizer isso a ela.
Ela não sabe, ou disfarça muito bem, que ele não havia feito isso
anteriormente, que ele não tinha idéia de como consumir a montanha nevada. Logo
ela dá uma dica com seu corpo (ele tão branco quanto o chantilly): seus dedos
de mulher seguram com delicadeza e precisão a minúscula colher que estava
depositada aos pés da xícara e, num ato de tortura propositada, mergulha a
cabeça da colher na cremosa imensidão branca, retira um pouco da neve, e a
afoga rapidamente na superfície do cappuccino que havia pedido para eles.
Derrotada, a colher se curva aos mandos da mulher e cede sua vida aos lábios
dela. Vermelhos claros. Eles se abrem lindamente, buscando o chantilly manchado
com café, e se fecham sobre o pescoço da colher. Ele, então, percebe que é
assim que se come aquilo que havia chegado em recipiente alheio. Ele a imita e
descobre porque ela sente prazer ao fazer aquele ritual: realmente é saboroso.
Conversam
e ele torce para que o chantilly nunca acabe. Mas a sorte não o acompanha
sempre: alguns minutos são suficientes para que reste apenas a bebida a ser
consumida. Um homem entra na loja e passa por trás dela, dirigindo-se à outra
mesa. Ainda bem – pensa ele. Ele é egoísta e quer aquele momento só para si.
Mas talvez não deva dizer isso a ela. Não, não direi. E continua a conversar e a
beber o café misturado ao chocolate espesso. Ela é agradável. Realmente. Seu
tom de voz não é indefinido, como ela brinca: para ele, é o tom dela, que é
único. Seu português correto, com plurais utilizados, o deixa um pouco inibido,
já que ele nem sempre fala assim. Ou talvez fale, mas não se lembre. Enfim, de
qualquer modo, nessa tarde ele falaria bem também. As palavras escapam dos
lábios dela, dançando. E as palavras saem adocicadas pelo chocolate, deixando
resquícios invisíveis em seus lábios: entre uma palavra e outra, ela os une
para resgatar o sabor da bebida que corre o risco de se perder no ar. É algo
único, que só ela sabe fazer do modo como o sabe.
Seus
olhos verdes refletem a xícara. E a cerâmica ganha uma coloração diferente: os
olhos dela são verdes, mas incomuns. De um verde raro, mais escuro, um verde de
minério, um azinhavre lindo. De bochechas rosadas, seu rosto ganha harmonia
entre lábios vermelhos, olhos-azinhavre e cabelos pretos com franja para o lado
direito (que ela sempre ajeita quando cai sobre os olhos). Ela sorri, ela ri,
ela compartilha um pedaço de sua vida com ele entre um gole e outro.
Ele
está perdido agora, entre as palavras dela, seus gestos, suas cores, sua beleza
e o conteúdo da xícara que está acabando. Ele torce para que o cappuccino possa
durar para sempre.
E
fica um tanto triste quando descobre que a bebida, enfim, acabou.