Um copo de leite caiu lentamente.
O líquido
branco manchou o chão empoeirado e velho. O pai havia dado um tapa no rosto do
jovem. Estavam sobre a mesa da cozinha o copo, o bule de alumínio, um grande
pedaço de pão preto e um naco de manteiga que jamais derretia no inverno. A
barba do velho subia e descia apoiada na grande barriga. Ele observava a marca
de seus dedos calejados na pele branca do menino. A mãe permanecia de costas,
olhando a panela que chamuscava no fogão à lenha. Prendia a respiração. Suas
mãos amassavam o avental e uma pequena lágrima de medo escorreu pelo canto
direito. O silêncio da cena era quebrado pelo chiado ofegante que saía das
narinas do pai. O garoto, estático, olhava as migalhas de pão nas nervuras da antiga
mesa de madeira escura.
“Pegue os
pedaços do chão” – ordenou o velho. O jovem continuou sentado, olhando a
textura rústica da madeira. O velho se levantou, derrubando a cadeira, e
batendo com a costa da mão no bule opaco, jogando-o contra a parede. Xingou.
Segurou o garoto pelos cabelos e o forçou para baixo. O menino caiu de joelhos
sobre um dos pedaços de vidro e sentiu a pele rasgando. O pai empurrava sua
cabeça em direção aos fragmentos, apontando-os e repetindo para recolhê-los.
Suas mãos de criança desenharam figuras irreais no leite derramado enquanto
seus olhos buscavam o menor dos pedaços a ser colhido com os demais. Vendo o
serviço feito, o pai largou o jovem e saiu da casa. O menino foi em direção à
mãe e ela, finalmente, deixou de ser uma pintura parada. Secou a lágrima
teimosa e estendeu as mãos trêmulas para receber os cacos. Jogou-os no pequeno
cesto de lixo ao lado do fogão e, com os olhos, mandou a criança se sentar
novamente. Ajoelhou diante dele e ergueu a perna de sua calça esfarrapada até a
coxa. Um delicado sorriso de sangue escorria pelo seu joelho, com uma joia rosada
brotando da abertura, entre a carne nova e pura. O frio que entrava pela janela
só tornava o ferimento ainda mais dolorido. Ele olhava a floresta coberta de neve
e ouvia os passos do pai caminhando para o celeiro. A mãe puxou o vidro e o ar
gelado da cozinha coagulou o sangue. Ele não chorou. Quase nunca chorou na
vida. Também pouco falava, e a mãe teve de entender que um gesto quase
imperceptível de sua cabeça era um “sim” à indagação se queria um pouco de
açúcar. Ela colocou um fio de leite numa tigelinha e misturou duas colheres do
açúcar mascavo que guardava dentro do armário. O menino comeu se esquecendo do
machucado no rosto, no joelho, na alma, sentindo os grãos de areia brincando e
fazendo cócegas em sua língua.
***
Entrou no
quarto mofado e vazio dos pais e procurou o berço com a tinta branca lascada.
Uma luz azulada banhava o corpo do irmão através da fresta da janela
consertada. Seu peito arfava tranquilamente e seus lábios delicados se mexiam
enquanto dormia, expelindo, vez ou outra, um ruído inteligível. Pegou o irmão
no colo, sentindo o cheiro de leite azedo que seu corpinho emanava, cobriu-o
com um cobertor rasgado, calçou os sapatos castigados pelo tempo e saiu.
O mano acordou
durante o trajeto que ia da entrada da floresta, ao lado do celeiro, até o
riacho a uns trezentos metros de distância. O outono anunciava que a neve
chegaria novamente, mas o frio já conseguia congelar seus dedos quase aquecidos
dentro do calçado. O menino era pesado para alguém com um ano de vida. Seus
braços gordos se agitaram no ar quando ouviu o ruído da água, balançando os
cabelos do mais velho. Havia uma pedra na beira do riacho, côncava, perfeita
para um corpo miúdo. Sua mãe o colocava ali quando tinha a mesma idade do
irmão. Não possuía nenhuma lembrança visual dessa época, mas o cheiro do sabão
de cinzas que a mãe usava para lavar as roupas ali, no verão, jamais saiu de
sua mente. Depositou o mano sentado na pedra, puxando o cobertorzinho sobre seu
corpo, deixando apenas seu rosto à mostra: um casulo na natureza.
Recolheu
alguns gravetos e preparou uma modesta fogueira. Tirou a faca que estava presa
ao cinto e procurou o tronco que havia escondido em algum lugar. Afastou a
aranha que tentava construir moradia ali e levou o pedaço de madeira para perto
da fogueira. Enquanto a criança enrolava a língua, falando em seu dialeto
próprio, o mais velho esculpia uma figura na madeira. Um boneco. Um ser magro e
comprido, com braços finos e dedos longos, corpo curvado e nariz afunilado.
Afundou a cabeça do brinquedo na seiva da árvore em que estava recostado e a
mergulhou no emaranhado de líquens que dormiam próximos ao riacho. A figura
estava completa com seu longo cabelo.
“Isso é um
troll” – disse, afastando o brinquedo das mãos curiosas do bebê. “Ele come as
crianças que não se comportam”. Beijou a fronte do mano e o carregou em seu
braço, deixando o outro livre para levar o boneco voando pelo ar gelado da
floresta.
Anoitecia
quando chegou em casa; foi ao quarto dos pais devolver o irmão. Na cama, seu
pai estava deitado sobre a mãe, ofegante. A atenção da mulher foi desviada
quando o jovem colocou o bebê no berço. Ela resmungou algo e logo foi calada
pelo marido com um soco.
***
Acordou com
os barulhos vindos da cozinha. Não teve coragem de abrir a porta de seu quarto.
Prendeu a respiração e olhou pela fechadura o que acontecia. O pai estava
bêbado. E violento. A mãe gritava algo com ele, sobre a falta de comida na mesa
e os credores que batiam à porta quase toda semana. O velho a chamava de
vagabunga, a acusava de se deitar com outro homem, um primo distante que
visitara a família há cerca de um ano. Ele ouviu os passos do pai correndo para
o quarto de casal e voltando com o mano nas mãos. Apontava para a criança e
para si mesmo. “Esse desgraçado não é meu filho, ele não se parece comigo!” –
berrava, fora de si. O bebê, ao contrário dele, tinha os cabelos pretos. A mãe
estava desesperada, dizia que as crianças nascem com os cabelos escuros e que depois
ficam mais claros quando crescem, que com o outro filho tinha sido assim.
“Mentirosa! Não me lembro de ele ter nascido escuro”. “É porque você passou a
infância dele toda bêbado!” – ela respondeu, mas logo pôs as mãos sobre a boca.
Havia dito algo errado. Muito errado. O velho perdeu o controle. Xingou a
esposa. “Esse desgraçado não é o meu filho, sua puta!” – e então, pelo buraco
da fechadura, a criança viu seu pai jogar o bebê contra a mesa da cozinha. Ela
parou de se mexer e chorar no mesmo instante. A mãe caiu de joelhos, no exato
local onde há tempos o leite havia sido derramado. Levou as mãos à cabeça e
gritou sem que ninguém conseguisse ouvir sua voz. O velho saiu batendo a porta.
***
Chovia. O
minúsculo caixão branco estava repleto de lama dentro da pequena cova. O menino
estava ao lado da mãe, segurando sua mão. O pai estava mais longe, olhando o
enterro como se não estivesse ali. Seu cheiro de álcool causava enjoos. Quando
terminaram de sepultar o bebê, o irmão enterrou o boneco de madeira ao lado da
lápide tosca em cerâmica. Os primeiros flocos de neve começavam a cair.
***
Observava
os azuis olhos opacos de sua mãe. Sua pele castigada pelos longos invernos
estava sem vida. Ele nunca mais falou. Vivia perdida em pensamentos. Só
cozinhava quando o marido chegava do trabalho e a agredia por não encontrar
nada preparado. O peso das coisas a serem feitas em casa caiu sobre o menino. O
velho aparecia em casa frequentemente embriagado e cobrava satisfações do
filho. Numa das vezes, a violência da agressão foi tão forte que o garoto teve
cortes profundos nos lábios e levou semanas para melhorar.
As coisas na
casa só pioraram. Havia dias em que não existia comida a ser preparada. O velho
foi despedido da lenhadora. Com sorte, todas as galinhas botavam seus ovos, mas
logo chegou o tempo em que algumas tiveram de ser sacrificadas. O pai bebia
muito e às vezes levava algo de casa para trocar por mais bebida. O rádio da
cozinha e o berço do mano foram vítimas de seu vício. O velho parecia ter gosto
em entrar em casa apenas para ofender esposa e filho e depois sair para a
floresta com sua garrafa de álcool.
***
Estava
sonolento em sua cama durante a madrugada quando ruídos de galhos raspando sua
janela o despertaram.
Levantou-se
e foi olhar a cozinha. Nada. O quarto dos pais: igualmente vazio. A casa estava
deserta e apenas um lampião ardia sobre a cadeira perto da porta.
Escorregando
sobre a neve, seguiu a linha tortuosa calcada no gelo que adentrava a floresta.
O caminho o levou ao riacho.
Escondido
atrás das árvores, observou um ser magro, alto, com longos cabelos. Apenas
conseguia notar seu vulto e o de um outro ser, gordo e grande. O ser magro
emitia ruídos estranhos e seus dedos finos vasculhavam a roupa do homem caído.
A lâmina de
um machado brilhou sob a lua.
Desceu uma
vez. E outra. O menino ouvia os ossos sendo quebrados e a carne separando-se do
corpo. Assustado, deixou o lampião cair. A última coisa que viu foram os olhos
vermelhos daquele ser magro olhando em sua direção. Correu pela escuridão,
caindo e machucando as mãos.
Correu para
debaixo do cobertor de sua cama e permaneceu em máximo silêncio até que o sono
lhe venceu.
***
O dia
seguinte.
Acordou e
foi à cozinha. Sua mãe estava sentada de frente para a janela aberta. O frio congelava
o ambiente e as árvores brancas tornavam a paisagem toda igual lá fora. Ela olhava
fixamente a imensidão alva com um sorriso débil. O menino chegou perto e tocou
os cabelos da mãe. Desceu os olhos e viu manchas vermelhas no avental e nas
mãos da mulher. Estavam secas e sujas de terra. Pegou um copo de leite e
entregou a ela. A mulher o observou com seus olhos lacrimejantes e sem vida. Levou
o copo à boca e deu alguns goles. Uma tosse espontânea brotou de sua garganta,
fazendo-a cuspir o leite e deixando o copo cair no chão. Seu corpo se torceu de
dor e ela buscou o ar vindo da janela. Passados os espasmos, voltou a ficar
inerte na cadeira.
O menino
recolheu os cacos de vidro. Furou um dos dedos e sugou o sangue ferroso. Jogou
o lixo fora e foi para trás da casa cortar lenha.
Quando
voltou, não encontrou a mãe. A janela estava fechada e por entre as ripas de
madeira percebeu que o celeiro estava aberto. O lusco-fusco poderia confundir
seus olhos, então foi se certificar de que as portas do local estivessem
trancadas. Estava certo: o celeiro estava aberto, porém, a corda reserva usada
para retirar água do poço havia sumido.
Viu pegadas
e reparou que, novamente, iam para a floresta. Os pés finos diziam que
pertenciam a sua mãe. O menino correu na direção apontada. A noite caía e ouviu
corvos crocitando e voando por entre as árvores. Perdeu a respiração. Com as
forças que restavam, chegou ao local do qual os animais haviam fugido.
Sua mãe
estava pendurada com uma corda no pescoço. Seu corpo balançava no vento. Ele
reparou que a corda roubada estava presa a um dedo fino e longo de madeira. Percebeu,
então, que um troll havia ceifado a vida de sua mãe.