Aquela
tarde não foi uma tarde comum. Havia asfalto molhado pela chuva matinal e a
temperatura caíra rapidamente na cidade. Acordou e viu o teto mofado de seu
cubículo. Ainda mantinha o sabor do álcool degustado madrugada adentro e aquilo
martelava seus pensamentos com sentimentos de derrota e nervosismo. Respirou
fundo. Expirou vapor de vodca misturada com cansaço. Fazia frio em seu quarto
quando se levantou. Procurou a garrafa d’água no criado-mudo: nem uma gota
restara. Amaldiçoou o frasco. Caminhou para a janela embaçada: o sol
escondia-se preguiçosamente com medo da garoa que arranhava o vidro. Encostou
os dedos na janela e os deslizou acompanhando os finos traços de unha-molhada. As
pessoas passavam apressadas na rua, protegidas ou não, como vultos por trás da
cortina esfumaçada formada pela quentura de sua respiração. Descansou a cabeça
no vidro e fechou os olhos. Quando os abriu, o quarto parecia sofrer a mesma
doença do mundo lá fora: desfocado e aquoso. Cerrou os olhos com força e
pequenas gotas se agarraram aos seus cílios. Retirou-as com o polegar.
Pegou a roupa sobre a cama e reparou
em algo que brilhava. O retrato sorria em preto e branco: um delicado rosto
feminino manchado pelo reflexo do teto. Seu sorriso enigmático trouxe-lhe à
memória o perfume de seus lábios suados naquela manhã ensolarada, enquanto se
beijavam sobre a grama do campo. Os olhos... avelãs; muitas vezes enfurecidos
por culpa sua, muitas vezes tristes por culpa sua, mas, ali, naquele instante
fotográfico, eles pareciam felizes e tímidos, esperançosos. Segurou a pequena
moldura dourada e afagou seus longos cabelos, lembrando como ficavam
especialmente escuros quando ela saía do banho.
“Está
acordado?” – foi isso o que ela naquele dia. Ele abriu os olhos e sentiu o
hálito matinal dela. Dois expressivos pontos negros nadavam em leite: piscaram.
Ganhou um beijo. Mais um, na bochecha. Abraçou-a. Porém, sentiu que tudo fora
mecânico demais, uma obrigação que vinha se arrastando há tempos. Não sabia
mais o que fazer para que as coisas voltassem a ser como antes: simplesmente
uma sucessão de pequenos erros botara tudo a perder. Ele lamentava com a alma,
e via sua mulher morrer aos poucos perante seus olhos. Não trocaram palavras no
café da manhã. Ela estava calada e ansiosa. Às vezes, ele sentia que ela o
observava; com pena. Não a culpava e lutava contra seus pensamentos ruins.
Terminaram de comer. Trocaram de roupa. Pegaram seus pertences e se preparavam
para mais um dia de trabalho. Na soleira da porta ela estancou. “Preciso falar
com você”. Ele sabia o que era e desejou não ouvir. “Acho que não dá mais...” –
ele respirou fundo – “...você tem estado distante e... poxa, não sei o que
dizer: há muito tempo ensaio isso, mas nunca consigo falar”. Ele a mirou
profundamente e alguns segundos em silêncio os separaram do “Acho melhor a
gente terminar”. Ele abaixou a cabeça e mordeu os lábios: já esperava por isso.
Sentiu a pressão aumentando, sua cabeça zunindo. “Você não vai dizer nada?” –
ela perguntou com aquele jeito terrivelmente encantador de menina assustada.
Não havia o que dizer: “Se você quer
assim, que seja”. “Não vou voltar mais... espero que entenda. Também não quero
que me procure mais e que não afete minha vida; talvez possamos ser amigos, mas
conheço você e sei que irá estragar tudo de alguma maneira”. Sentiu uma dor
imensa no estômago e amaldiçoou a capacidade feminina da sinceridade. Ela se
virou, seus olhos ficaram tristes e se foi. Não disse adeus, não deu o último
beijo. Na verdade, a última vez que roçara seus lábios nele foi em sua face: um
beijo seco e sem graça. Jamais esqueceu.
Agora
ele estava ali sentado na cama segurando a foto dela. Ela o deixara há três
anos e desde então a vida se tornou um gigantesco filme preto e branco. Continuara
no trabalho, automaticamente realizando o que lhe era mandado. Afastou-se dos
mais próximos e cada vez mais sentia necessidade do álcool e cigarro. Sua
existência feliz cedeu lugar à tristeza e, meses depois, à raiva. Irritava-se
facilmente com qualquer coisa, e frequentemente era posto para fora pelo dono
do bar que enriquecia com suas idas constantes. Em casa, machucava-se com um
velho estilete enquanto batia involuntariamente a cabeça contra os azulejos do
banheiro. Então chorava e bebia qualquer coisa que havia restado nas garrafas
sob a cama... No momento, secou os olhos e pôs o retrato sobre o criado-mudo.
Vestiu-se com o que achou mais facilmente espalhado pelo chão e saiu.
A
noite já trazia seu romantismo e ele caminhava rapidamente, olhando para o piso
escorregadio. No semáforo parou. Foi obrigado a levantar as vistas e ver a cor
vermelha. Do outro lado da rua um casal esperava para atravessar. Ele não sabia
ao certo dizer quando começou, mas seu olhar não reconhecia mais o rosto das
pessoas. Eram apenas vultos, sem olhos, nariz ou orelhas, porém, apenas com
lábios vermelhos. Odiava reparar nos lábios dos outros: eles eram felizes e
bondosos. Sua alma estava despedaçada e não precisaria de felicidade alheia. Os
lábios do casal do outro lado se juntaram: conseguiu ouvir o som úmido do amor.
Cerrou as mãos, destacando os nós de seus dedos. Passou a mão sobre os cabelos,
com força. Quando ficou verde, atravessou bem longe do casal. Chegou ao bar de
sempre e pediu ao sujeito de trás do balcão a bebida cotidiana. “Claro” – ouviu
daquela boca rodeada de penumbra. Bebeu
de uma vez, pediu mais. Tirou uma cartela de comprimidos do bolso. Engoliu com
o álcool. Ficou estático apoiado sobre o balcão, ouvindo as conversas alheias.
Pagou e saiu.
Já
era quase madrugada quando voltava para casa. Estava bêbado, o que só aumentava
sua raiva. Cambaleando pelas ruas escuras de seu bairro, sentiu algo chocar-se
contra seu corpo e cair. Atentou. Um vulto feminino com uma sacola a poucos
centímetros de distância. Ele a ajudou a levantar. Desculpou-se, mas leu em
seus lábios rosados um “Maldito bêbado”. Ele pegou a sacola e ela disse que
havia quebrado o espelho que comprara. Procurou dinheiro pelos bolsos, mas
havia gastado tudo no bar. “É um desgraçado mesmo, você sempre foi o mesmo!” –
berrou a mulher. Aquilo o enervou ao extremo. Empurrou a mulher, fazendo-a cair
novamente na calçada com poças de água misturada com urina. Ela o xingou. Ia se
levantar, mas não teve oportunidade: cego, ele se jogou sobre ela com um caco
de espelho. Ela não conseguiu dizer nada, sua voz se afogou em meio ao sangue
que fluía pelo buraco na garganta. Seus lábios ainda pareciam extremamente
lindos e provocativos, menosprezando a própria morte. Fora de si, ele empunhou
o pedaço de vidro novamente e passou os afundou na boca dela, separando os
lábios do restante da face. “Sorria agora!” – ele gritou. “Ria de mim, ria da
minha vida!” – e seu corpo tremia com os espasmos de adrenalina e sofrimento.
Jogou o vidro sobre o cadáver e fugiu, tropeçando.
Chegou
em casa sem fôlego. Correu para o banheiro e lavou o sangue das mãos. Pegou
outra garrafa de bebida e sentou-se na cama, desnorteado. Bebeu quase tudo
quando notou a mancha vermelha sobre o lençol: de seu bolso pingava sangue.
Puxou com os dedos dois pedaços grudentos de carne fresca. Aquilo o horrorizou.
Não pôde desviar o olhar e a lembrança lhe voltou à mente. É um desgraçado mesmo, você sempre foi o mesmo! Ele prendeu a
respiração. É um desgraçado mesmo, você
sempre foi o mesmo! Ele deixou os lábios caírem sobre o carpete. É um desgraçado mesmo, você sempre foi o
mesmo! Colocou as mãos sobre a cabeça e gritou silenciosamente, parecendo
afogar-se com o ar do quarto. Caiu de joelhos e se arrastou para o criado-mudo.
Pegou o retrato dela. Segurou-o com tamanha força que o vidro se quebrou,
entrando em suas mãos. Arrancou a foto e correu para a rua.
Precisava
ver aquele corpo. Tinha de ter certeza de que era ela, que desgraçadamente
era ela. Caia e se levantava. Suas pernas iam o mais rápido que podiam.
Atravessou aquela avenida prestar atenção e quase foi atropelado. Alguns
quarteirões a mais e ele avistava uma ambulância e um carro de polícia no
horizonte. Um corpo feminino estava sendo removido. Apertou o passo e
atravessou a rua. Mas dessa vez não conseguiu chegar do outro lado. A claridade
dos faróis ardeu em seus olhos. Um grande impacto o arremessou. E então tudo
escureceu.
Acordou
com uma voz que o chamava. Dois belos olhos o fitavam, sérios. Recebeu um
beijo. Outro na bochecha. Abraçou aquele corpo delicado. O cômodo estava
incrivelmente branco e tranquilo. Tomaram o café da manhã. Trocaram de roupa.
Pegaram seus pertences e se preparavam para mais um dia de trabalho. Na soleira
da porta ela estancou. Abriu uma grande fenda onde outrora existiam lábios.
“Preciso
falar com você”.