São
Paulo, 1852.
Mascava seu tabaco oriundo de
Nebrasca. Era o último punhado pertencente à bagagem trazida no navio três anos
antes. O liquido marrom escorria pelo canto da boca, dançando entre a barba mal
feita. Ele sorria, inclinando-se na cadeira com os braços atrás da cabeça e
jogando suas botas surradas sobre a mesa. Estendeu o dedo e chamou o atendente.
- Traz mais um – e olhou para o
pequeno copo com resquícios de uísque.
Receoso, o balofo homem careca
largou a bebida sobre a mesa e voltou para trás do balcão. Homens se agrupavam
nas cadeiras, ora sussurrando, ora apontando angustiados para aquele sujeito
que tinha um Colt preso à cintura. Bebeu de um trago o uísque e abriu o Correio Mercantil de 27 de Abril –
herança de sua última ida ao Rio de Janeiro: Nesse jovem perdeu o Brasil um de seus mais esperançosos filhos, um
coração patriótico e dedicado, um poeta cujos vôos deviam elevar-se a grandes
alturas, um advogado que prometia em breve conhecer todos os arcanos da
ciências jurídicas, pois que ainda no fervor dos anos já lhe eram igualmente
familiares os poetas e literatos da Itália, da Alemanha, da França e da
Inglaterra, assim como os escritos dos mais abalizados jurisconsultos e
publicistas. Ele estivera lá. Ele vira o caixão de seu conhecido, Álvares
de Azevedo, ser baixado e sumir. “Uma pena” – pensou ele – “Tão jovem... Não
soube se preservar”. Procurou o atendente da taverna com os olhos.
Semicerrou-os. Engolindo a seco, o gordo levou mais um copo.
A tranquilidade no recinto foi
quebrada por um grupo de senhores que adentrou o local aos berros.
- Digo-lhes, o senhor José de Araújo
é cego! – o homem de belo cavanhaque gesticulava.
- Quer transformar a província em uma piada,
só pode – argumentou outro.
- O que houve, meus caros? – indagou o
atendente.
- O presidente alugou a casa do
Felizardo por nove anos. A Santa Casa de Misericórdia negou o pedido de
instalar os alienados lá, e agora vão trazer cá pra São João. Pense no perigo:
um bando de loucos aqui perto! Acho bom o senhor Alvarenga cuidar muito bem
dessa gente pelos 400$000 reis que receberá, afinal, ele vai dirigir o hospício
– disse o terceiro.
- E quem será o médico responsável?
- Dr. João Tomás de Melo...
Pediram gim e afogaram a raiva. O
homem que lia o jornal tirou palha e fumo do bolso de sua camisa listrada.
Enrolou e passou a língua. Acendeu na vela sobre a mesa. Encarou aqueles
senhores. Não haviam se importado com sua presença, mas notaram que o atendente
tremia ao olhar para aquele sujeito ao fundo do salão. O mais exaltado percebeu
e se virou.
- Ei, ridículo, o que está olhando? Perdeu seu
cavalo por aqui, por acaso? – Todos na taverna riram.
Ele permaneceu calado.
- Você é surdo, cowboy? – e caminhou em sua direção. Prostrou-se, rubro de raiva. –
Já ouvi falar de você: é o americaninho que acha que ainda mora por lá, não é?
Sim... todos aqui na cidade já ouvimos algo sobre sua figura, mas saiba de uma
coisa, não tenho medo de você! – e deu empurrou as pernas daquele homem para o
chão, fazendo-o se endireitar na cadeira. O silêncio abafou o salão.
- Acho melhor você ir embora – disse carregado
no sotaque. – Não querer machucar você,
apenas estou aqui tomando meu whisky
e lendo my journal.
-Ah, é? E que porcaria está lendo? –
puxou as folhas. – Vejam, o cretino lê o lixo carioca, aposto que adora o nosso
rei, não é? Nos Estados Unidos da América não há rei, por isso a gente de lá é
tão imbecil. E o que... Álvares de Azevedo?! Gosta de poesia de ébrios? Era o
que faltava.
-
Álvares era meu friend. Não o ofenda.
- Essa nação está perdida mesmo! –
riu. O homem sentado tirou o cigarro da boca e cuspiu tabaco nos sapatos pretos
e brilhantes daquele ser com cavanhaque.
- Ora, seu filho de uma p... – mas
não teve tempo de terminar sua frase. Um tiro entrou pelo seu queixo, saindo
pelo topo da cabeça, pintando o teto da taverna com uma bela cor vermelha.
- QUEM MAIS AQUI VAI ME PERTURBAR?!
– chutou as cadeiras ao lado e se levantou engatilhando novamente o seu colt.
Os dois amigos do morto se entreolharam
assustados, mas, tomados pelo ódio, avançaram. Um deles carregada uma pesada
bengala de madeira, o outro quebrou a garrafa de gim que estava sobre o balcão.
O cowboy se desviou do ataque do primeiro, pegou sua cabeça e bateu contra a
mesa, estilhaçando o copo em sua face. O homem caiu de joelhos e levou as mãos
ao rosto gritando de dor enquanto o segundo partia com a garrafa tentando
acertar sua garganta. Rapidamente, o homem com o colt passou por baixo da
investida e agarrou seu pescoço por trás. Encostou o corpo do sujeito contra o
rosto machucado do agonizante e atirou. A bala vazou o coração e ficou alojada
na têmpora do outro.
- Três homens, duas balas. Damn, estou ficando bom! – sorriu
discretamente.
Foi ao balcão: o atendente estava
estarrecido.
- O se-senhor acabou de matar um
guarda. Essa gente tem influência, eles irão atrás do senhor – e começou a
esvaziar uma garrafa de uísque.
O cowboy tomou a garrafa de suas
mãos, tirou do bolso três moedas e as atirou sobre o balcão.
- Que assim seja, sinto falta da
ação dos tempos em Nebrasca – ajeitou o chapéu branco e piscou. Subiu em seu
cavalo e sumiu no cair da noite.
Um mê depois, gemidos atravessavam a
janela de madeira do segundo andar daquela casa. Jogados ao lado da cama estavam
um coldre com arma, uma calça velha, uma camisa listrada com as cores vermelha
e branca, e uma garrafa vazia de uísque. Sob os lençóis quatro pés se
esfregavam. O barulho foi interrompido com socos na porta.
- Senhor, os homens da guarda estão
vindo! – alertou a escrava do bordel.
“Droga, mas é a terceira vez que me
atrapalham só essa semana...”. Beijou a bochecha da morena, vestiu-se correndo
e saiu pela janela. Assoviou e seu cavalo logo atendeu, ficando debaixo da
casa. Pulou, penteou os cabelos com os dedos, arrumou o chapéu e o revolver,
esporou o cavalo e seguiu rapidamente a Porto Geral abaixo.
- Senhora, o que tanto chama a sua
atenção nele? É um homem comum, e eu diria que é louco até por usar essas
roupas estranhas – perguntou a escrava à dama, que estava observando seu amante
fugir.
- É o nome, minha querida... Ele faz
jus ao nome... – suspirou.
O cowboy adentrou a Rua de Baixo em
disparada. Logo ouviu mais cavalos trotando: guardas o perseguiam esbravejando.
Tiros zuniam ao seu redor. Segurou o chapéu: - Irra! – gritava ao meter as
esporas em seu cavalo castanho. Ainda sob o efeito do álcool, não havia
percebido que a Rua de Baixo não possuía saída. Trotou até quase o seu final.
Um tiro lhe vazou o chapéu de estimação: - You
bastard! – gesticulou para o guarda imediatamente atrás de si. Não havia
escapatória: ou a morte ou a água. Posicionou o cavalo e meteu-lhe as esporas.
Para sua infelicidade, o animal estancou na margem do Tamanduateí,
arremessando-o, sozinho, nas águas geladas do rio. Só teve tempo de mergulhar
para escapar da chuva de balas. Mangabo, seu cavalo, escapou dos guardas que
tentavam segurar suas rédeas e sumiu.
Chovera
aquela tarde e o rio estava agitado, com correntes fortes que trataram de
carregar o cowboy para longe. Percebendo que o perigo passara, nadou até a
margem e sentou-se na grama para secar a roupa. “Sem mulher, sem cavalo, chapéu
furado... o que mais falta me acontecer?!” – o cansaço tomou conta de si e
adormeceu.
Clique.
Abriu um olho e viu a lua entrando em eclipse.
-
Ora, ora, ora, mas se não é o nosso companheiro estrangeiro! – apontava o
revolver para o centro da testa do cowboy.
-
Antônio Inácio do coração de Jesus e Melo, o que faz fora do Convento do Carmo
a essa hora? E porque um nome tão longo? – tentou desviar a mira do colt para
outro lado, em vão.
-
Sabe como é, Deus me guiou até você. Minha charrete está atolada logo ali
graças à chuva infernal de hoje. Quando parou, pensei: “Ó que azar, meu Pai”.
Porém, a luz celestial brilhou sobre um corpo jogado na beira do rio. Vim
averiguar e, surpresa a minha!, justamente você,
o homem mais procurado da Província. Valerá uns bons contos de réis, meu caro.
Agora levante-se! – chutou-lhe as costelas.
- Desgraçado – tossiu o cowboy, tendo de
entregar sua arma ao prior.
-
Ótimo – pegou o revólver, levantou a batina e o prendeu a um cordão da cintura.
- Ah, poupe-me dessa visão!
-
Pronto, caminhemos: vou deixa-lo imediatamente nos portões da Cadeia.
-
Longo caminho, padre.
-
Verdade, mas poderei desfrutar mais tempo de sua adorável companhia, americano.
Apertou o cano de seu colt contra as costas do cowboy.
Quarenta
minutos após o início do percurso, passavam pelas estreitas e escuras ruas que
rodeavam a Igreja da Sé, inaugurada há dois anos, e cruzaram o Anhangabaú. Na
São João, avistaram a casa de Felizardo Antonio Cavalheiro e Silva, agora
transformada no Hospício de Alienados. O cowboy assoviou.
-
Uau, então é aí que ficam os loucos, padre?
-
Cale a boca, não gosto deste lugar. Na rua ouviam-se apenas os passos dos dois.
-
Preciso urinar, padre. Não me venha dizer para esperarmos chegar na cadeia, não
dará tempo.
-
Infeliz, faça aí mesmo.
O
homem ajeitou o chapéu e ficou de frente à parede, com o prior ao seu lado.
-
Vamos logo!
-
Calma, estou quase acabando... Está escuro aqui, espero não molhar minhas
botas...
De
repente, um grito de morte pareceu brotar do solo. Um gato preto correu passou
por entre os pés do cowboy, correndo em direção a Antônio Inácio. Com um berro
feminino, o prior escorregou. O cowboy aproveitou, acertou-lhe um murro e puxou
a arma de suas mãos.
Apontava
para o carmelita quando ouviu chamarem da janela acima deles: - Quem está aí? –
e uma risada lunática fluiu pelas frestas da madeira. Distraído, o cowboy não
teve tempo de se esquivar da joelhada contra suas partes íntimas.
- My
balls, fuck! Vou matar você!
Quando
a dor amenizou, viu o prior terminando de cerrar a porta do hospício.
A
cólera tomou conta de seu ser. Deu com o ombro na porta, adentrando a grande
casa sem luz. Apenas sua respiração lhe fazia companhia. Engatilhou o colt e o
beijou: “É hoje que mandarei mais um filho para o Senhor”. Virou no corredor e
caminhou entre diversas portas que eram parcamente iluminadas à luz de vela.
Gritos de dor, xingamentos e risadas frenéticas compunham o pesado clima do
recinto. Uma voz rasgou o ar: - Quem é você? Saia daqui! – e pôs-se a prantear bem alto. O cowboy escutou passos
apressados vindos do final do corredor e disparou. Nada acertou, mas um baque
no corrimão denunciava que alguém subia as escadas rapidamente.
- Padre, você está na merda, sabia? Hoje vou
arrancar seu couro à bala! – galgou os degraus. Entrou em uma grande sala
repleta de livros. Parou e apurou a audição: um chiado baixinho vinha de trás
da cortina. Um tiro iluminou o cômodo: o prior disparara no desespero.
-
Fail! Agora eu vou ensinar como se atirar – riu.
No
entanto, em fração de segundos uma claridade banhou seus olhos: o prior havia
aberto a janela e se jogado.
Olhou
lá pra baixo: um corpo se mexia vagarosamente, estatelado. Foi analisar.
O
carmelita agonizava em meio ao sangue que lhe brotava da boca. Tirou uma moeda
do bolso. Jogou para cima e a depositou no peito da mão esquerda.
-
Dia de sorte, padre. Vou deixar que o destino se encarregue de você, miserável.
Tenho assunto mais importante pra resolver . Good bye.
“Maldição,
preciso achar Mangabo”.
A
noite era boa. A moça estava sobre ele com o chapéu de cowboy: - Irra! –
berrava ela. O divertimento foi interrompido com socos na porta.
- Senhor, os homens da guarda estão
vindo! – alertou a escrava do bordel.
- Diabos, de novo! – reclamou
pegando o chapéu de volta. Beijou a bela, abriu a janela, assoviou e pulou em
seu cavalo.
- Senhora, continuo sem entender...
Afinal, o que a senhora vê nele? – perplexa estava a escrava.
-
É o nome, minha querida... Ele é Johnny Dufallo Red... – suspirou Mary.