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A figueira

A manhã sempre trazia o aroma dos matos orvalhados de nosso quintal. No momento em que as sombras tentam fugir esticando-se pelo chão de terra batida até perderem a batalha e serem obrigadas a retornar aos seus papéis de almas d’casa, a luz do sol entrava obliquamente em nosso quarto: a cortina de renda branca cedia facilmente à passagem da claridade. O primeiro ponto que atingia era meu corpo deitado ao lado da cama de meu irmão mais velho. Éramos muitos, e tálamos ainda eram privilégios: estirava-me sobre um colchão surrado pelo tempo, descansando a cabeça no travesseiro recheado com penas e folhas de eucalipto, para respirar melhor. Meu olhos se abriam e enxergavam aquele farol de milhões de velas dando-me bom dia. Levantava-me, vestia-me e chamava meus outros quatro irmãos (três homens e uma mulher) que dormiam, todos, ali, no mesmo cômodo. Minhas outras duas irmãs dormiam com minha avó, no quarto ao lado.

Preguiçosamente, beijava minha mãe e pedia a benção ao meu pai – que desde cedo estavam na cozinha, preparando os almoços. Eu era o primeiro a usar o banheiro prostrado nos fundos do terreno, debaixo de uma grande laranjeira. Prendia a respiração e mijava no centro daquele buraco: demorava-me, pois ficava contando os pregos novos que prendiam a ripa superior (ela teimava em soltar; quase todo mês ajudava meu pai a consertar a casinha). Minhas irmãs odiavam a lentidão: “Você pode usar o mato, diziam, pois é menino!”. Ora, elas também podiam usá-lo e, se ninguém o fazia, eu não iria. Saía com um sorriso maroto sob as acusações e ia lavar as mãos e o rosto na bica. Ouvia um latido que logo pulava os arbustros e vinha lamber meus pés: era um bom cachorro. Estava velho e tinha asma: se por um lado não servia para afugentar os cães que espreitavam nosso galinheiro, por outro, não incomodava nos dias de pesca: era um silêncio absoluto no laguinho de nosso tio. Afagava-lhe as orelhas e batia em minhas pernas, conduzindo-o pela terra fresca até a entrada da cozinha. Logo estávamos todos reunidos para o café. A mãe cortava um generoso pedaço de pão quente e passava uma lasca de manteiga antes de me presentear. O bule azul claro vertia o café puro em nossas canecas esmaltadas – um mimo de casamento dado pela prima de meu pai. Gostava de sentir o calor invadindo-me a partir das pontas dos dedos; arrancava um naco e jogava para o cachorro, o resto enfiava todo na boca, molhando a massa com a bebida aguada adoçada em excesso.

Terminado o café da manhã, minha mãe distribuía uma trouxa com a marmita para cada um dos filhos. Dava-nos um beijo na testa e um tapa de incentivo na bunda: “Obedeçam ao seu pai”. Ele, por sua vez, recebia um ligeiro encostar de lábios e a bolsa com seus pertences e a marmita. O calor ainda não estava forte quando partíamos. A caminhada era longa e meu par de sapatos anuais tinham de desviar das pedras mais pontudas: um furo ou rasgo representaria pés molhados por bons meses. Íamos conversando baixinho, às vezes rindo. Meu pai era um homem de poucas palavras, mas seus olhos eram de um amor imenso: eles sorriam com nossas peraltices. Quinze minutos após o início, passávamos pela venda do compadre. Não recordo seu nome, mas era um homem parrudo e azeitonado, possuidor de um espesso bigode como o de meu pai, embora mais grisalho. “Hoje é dia de pagamento; na volta, iremos dar um pulo aqui”. E isso era motivo de festa: sabíamos muito bem o que ele queria dizer. Continuávamos, então, nosso caminho, mais motivados pelo futuro agrado. Outros vinte minutos e a plantação de algodão pintava o horizonte com matizes castanhos e brancos: certa vez, um doutor que nos visitou disse que aquilo se parecia com neve. Nunca vi neve, mas sempre me lembrava de um gigante tacho de pipoca quando observava a plantação. O trabalho sob o sol era cansativo, porém, aguentávamos a labuta graças ao som do rádio de pilha que meu pai carregava em sua bolsa. A estação local tocava as modas de viola que falavam das alegrias e amarguras da vida, da pobreza e da riqueza, do respeito e do assassinato: imaginava os dedos ligeiros daqueles caboclos fazendo aquela peça de madeira chorar, extraindo de suas cordas duplas – afinadas em cebolão – ritmos rasgados que muitas vezes obedeciam aos ditames da valsa. Um, dois, três, um, dois, três, um e dois e três, e lá se iam os flocos de algodão para dentro da minha cesta de vime, enquanto assoviava a melodia chiada que vazava pelo aparelho.

Quando as mãos estavam bem irritadas, o dia de faina findava. O almoço fora bem cedo, com nossas marmitas praticamente frias saciando a fome. Estávamos exaustos e querendo o jantar, todavia, o pai havia prometido. Ele pegou o pagamento por nosso trabalho e tomamos o caminho de casa. Íamos todos ansiosos, sem quase nada dizer. Aproximando-se da venda, meu pai brincou com meus cabelos. Olhei pra cima e vi aquele olhar que eu conhecia bem. Concordei com um gesto e saí correndo para o estabelecimento, sendo seguido por meus irmãos. Sentávamos no degrau da entrada enquanto meu pai proseava com o compadre. Logo apareciam com aquelas delícias que tanto adorávamos, uma para cada um de nós. Mensalmente, nos dias de ordenado, o pai comprava guaranás para a gente. Vinham aquelas garrafas escuras e arrancávamos a rolha rapidamente. Eu gostava de arrotar a cada gole, apenas para imitar meu pai, que tomava cerveja junto ao dono da venda. Ele ria. Encantadoramente, via meu pai abrir seus lábios, mostrando os dentes alvos como a cortina do quarto. Eu me sentia completo nesses momentos: não falava nada, sabia que sentia orgulho de mim. E meu olhos se enchiam de lágrimas. “É o gás do refrigerante” – eu argumentava quando meus irmãos indagavam o motivo de estar com as vistas marejadas.

O fim da tarde tornava todo o campo dourado. Via as formigas perderem as formas ao correrem terra adentro. Meus dedos dos pés fincavam o solo, sentindo a vida daquele lugar. Meu pai se ajeitou entre a gente, e se pôs a rodar seu chapéu de palha entre as mãos. Todos ficávamos quietos e pesarosos: sabíamos que era a hora da partida. “Acabaram?” – murmurou. Assentimos. “Obrigado, pai” – disse eu. Agradecimento feito pelos demais irmãos, exceto pelo mais novo. “O que você tem? Fale ‘obrigado’ ao pai”. Meu irmão, então, olhando para o chão, disse meio sem jeito: “Queria que o maninho também estivesse aqui...”. Não falávamos sobre aquilo. Todos sentíamos a falta dele e, ainda hoje, velho, penso em como estaria. O caçula de nossa família morreu com um ano de vida. O médico afirmara que ele nascera frágil, que era apenas questão de tempo. E o tempo chegou, com seu hálito gelado e perfurador. A morte de meu irmão trouxe o fim da alegria dentro de casa. Meu pai nunca mais tocara a rabeca nos dias de festas: e uma vez me surrou quando a peguei escondido. “Seu irmão está morto e você quer festejar?” – gritou comigo. Eu chorei aquele dia, pois me senti ingrato com meu mano e com a dor de minha família. Jamais entrei novamente no quarto de meus pais para pegar a rabeca sobre o armário: ela recebeu as camadas de pó com o passar dos anos, assim como nosso pai perante nossos olhos: suas poucas palavras se transformaram em monossílabos. Prefiro pensar que isso aconteceu porque ele nunca pranteou, nem por seu filho morto, nem por nada. Talvez se ele falasse demoradamente, as lágrimas brotariam de sua garganta, envergonhando-o. Talvez ele tenha chorado junto a minha mãe na noite do funeral. Ou, simplesmente, talvez eu tenha criado um muro em minhas percepções, proibindo-me ver aquele homem, que sempre achei tão forte, sofrer. Enfim, meu pai desviou o olhar de seu caçula, bateu o chapéu, colocou a bolsa no ombro e partiu, sendo acompanhado por nós, entristecidos pelo futuro que não ocorreria.

A noite já caía e apertamos o passo. O atalho que sugeri foi negado: “Por aí fica a figueira” – censurou-me. A estranha árvore de odor característico nos era proibida. Todos do campo falavam dela. Diziam que era amaldiçoada, que vultos apareciam para atrapalhar e assustar os transeuntes. Um dos vizinhos inclusive, contava-se, havia ficado aleijado ao cair do cavalo que, apavorado com as estranhezas da figueira, derrubara seu cavaleiro. Sequer o padre passava pelos lados da árvore: na missa, certa vez, relatou a desgraça de um homem apaixonado que havia se enforcado após o término do noivado. Eu tinha medo da figueira também, mas não achava que um grupo como o nosso sofreria qualquer ameaça. Em casa, a mãe ralhou comigo devido à sugestão: “Sabe muito bem que as almas moram lá, moleque. Temos de deixá-las quietas e jamais chamar por elas, entendeu? Uma vez passei por lá quando era moça e, Deus me livre!, jamais pisarei aquela estrada de novo”.

Naquela noite não consegui dormir direito. Por que as pessoas não tentavam entender o que acontecia àquela figueira? Não era possível que as almas morassem lá, pois eu sabia onde ficava o cemitério, e é ali que habitam os mortos. E duvidava que toda a história de assombrações fosse devido ao fato de a figueira ficar na fazenda do coronel: ele não seria tão ruim a ponto de inventar algo apenas para não roubarmos os figos, afinal, havia muitas outras árvores. Mas o dia raiou e minha rotina se apresentou impérvia a mudanças...

No mês próximo, o mesmo ritual. Descansamos um pouco na venda e bebemos nossos refrigerantes. No entanto, o dia seguinte foi algo que jamais esquecerei.  Acordei cedo, como de costume, troquei minhas roupas e chamei meus irmãos. Todos, exceto o mais novo. Ele não estava no quarto. Achei estranho, afinal, era o que mais dava trabalho para acordar. Fui à cozinha e perguntei aos meus pais por ele. Espantaram-se com a questão: não haviam visto ele passar por canto algum. Vasculhamos a casa e o quintal: ele sumira. Eu procurava entre os arbustos com o auxílio de nosso cachorro quando ouvi um bater de palmas na frente de casa: era o compadre. Veio inquirir se algum dos meninos havia trazido alguma das garrafas de guaraná, pois faltava uma em sua conta. Todos negamos, e logo o compadre trocou seu olhar acusador por preocupação quando o pai mencionou o acontecido. Perguntamos aos vizinhos e ninguém avistara meu irmão. Reunimo-nos, então, em casa e estabelecemos percursos que cada um deveria concluir. Calcei meus sapatos e segui pelo estradão. Gritava o nome de meu irmão e não ouvia resposta. Já havia andado muito e meus pés doíam, mas não desistiria. O fim da tarde estava próximo e o lusco-fusco angustiava-me: precisava achá-lo logo. Quase ao fim da estrada de terra havia uma bifurcação. Eu sabia: aquele era o atalho da figueira. Estremeci. Minha intuição dizia para procurar ali, mas meu medo era maior. Respirei fundo e fiz o sinal da cruz. Dei o primeiro passo, o segundo e entrei na alameda. Tudo era muito quieto, nem os pássaros cantavam. Um mormaço secava-me a garganta, tirando-me as forças para chamar pelo o nome de meu irmão. Mais um pouco e avistei a alta figueira. Figura imponente, esticava seus dedos-galhos ao céu, como uma garra de coruja buscando ratos. Estanquei, lívido: sentado encostado ao tronco permanecia meu irmão.

Aproximei-me e percebi que ele falava baixinho. O susto ao me ver fez com que a garrafa de refrigerante caísse de suas mãos. “Estamos todos preocupados com você! Por que está aqui? O pai vai lhe dar uma surra quando voltarmos!”. Mas ele sorriu, desconcertando-me. Pegou a garrafa e a ergueu, olhando ao redor: “Vim tomar guaraná com nosso maninho! Sei que ele ficaria com vontade ao ver a gente bebendo. E a mãe disse que as almas moram aqui, então ele só poderia ficar na figueira...”. Disse que estava louco, que jamais deveria roubar garrafas do dono da venda e, principalmente, nunca ir à figueira. Meu nervosismo se transformara em lágrimas: cortava-me o coração ouvir o discurso inocente de meu irmão mais novo. Meu irmão se levantou e colocou a mão em meu peito: “Tudo bem, mano, ele – e eu – agradecemos a sua preocupação” – então me abraçou fortemente. Ficamos chorando sob os galhos da figueira. A noite caía e tomamos o caminho de volta. Segurei a mão de meu irmão e caminhamos. Instantes depois, senti um aperto na mão que estava vaga. Um calafrio percorreu minha espinha, mas continuei andando. O aperto ficou mais forte e consegui distinguir dedos: falanges pequeninas de uma criança bem jovem. Sem olhar para o lado, mirava o horizonte e apertava os passos, rezando mentalmente. Meu irmão ia contente, rindo e falando. Quando chegamos à bifurcação para tomar a estrada principal, a mãozinha me largou. Mais uns poucos passos e tive coragem de olhar para trás. Ali, em meio à escuridão, avistei um vulto infantil. Ele acenou e voltou para a alameda, desaparecendo.

Em casa, contei o causo aos meus pais.

Na manhã seguinte acordei com o doce som da rabeca ecoando pela casa. Na varanda meu pai estava sentado, dedilhando o instrumento.

Ele sorria.


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