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A última embarcação

Eu ainda me assusto com o olhar de minha esposa. Vejo duas pupilas negras flutuando em rios brancos na escuridão: ela observa os movimentos febricitantes de quem não consegue dormir como antes. Acordo de meu pesadelo e a vejo mordendo os lábios, preocupada. Não digo nada. Não mais... Quando éramos jovens, provavelmente eu diria para não se preocupar, que tudo estava bem, e lhe beijaria os cabelos, acalmando-a. Hoje? Bem, hoje eu já não sei mais quando devo tocá-la. “Você mudou” – ela fala. Para pior, eu sei – penso comigo mesmo. Então me levanto e vou para a poltrona perto da janela. Milhares de luzes que jamais se apagam estão ali, dançando, piscando para mim, convidando-me para o mundo dos que, assim como eu, não conseguem dormir. Companheiros meus, tenho certeza, estão perdidos em mais uma noite de prazeres em Moria. Não tenho necessidade. Não tenho prazer. Sou apenas alguém que fez o seu trabalho – repito para mim todos os dias, tentando transformar uma angústia em conforto. Minhas mãos, sem meu consentimento, buscam algo atrás da poltrona e surgem na penumbra do quarto com algo que conheço muito bem. Meu companheiro C-14, meu empalador, minha ideologia durante os anos como fuzileiro. Gasto pelo tempo, amigão. Nós dois estamos. Minha pele, e a dele, trazem as marcas da guerra. Tiro minha camiseta e me ponho a massagear a face de meu irmão com o tecido repleto de suor. A nuvem que cobria o céu cede lugar às estrelas, e elas banham meus braços flácidos. Então encaro o segundo olhar da noite e as lembranças retornam, como se meu quarto fosse o palco daquela tragédia. Eu vejo todos os fantasmas em meu cômodo, correndo, gritando, morrendo.

 

            Se eu sabia o que estávamos prestes a presenciar naquele dia? Sim, eu tinha um mau pressentimento sobre aquilo. Era suicídio pisar naquele lugar. E nós pisamos. Não podíamos pensar: não nos era permitido, e também não havia tempo a perder com essas coisas menores. Eu acreditava que era preciso apenas executar ordens superiores. E, eu juro, fui muito bom nisso. Matei cada ser repugnante que cruzou meu caminho. Zerg ou Protoss. Meu pai, também ele um combatente, dissera-me certa vez: “Na hora da morte, filho, sorria. Isso é tudo o que pode fazer nesse momento. Não dê a eles o gosto do medo”. Meus nós dos dedos perdiam a circulação durante as batalhas. Agarrava meu C-14 e dele só largaria morto. A experiência em campo me mostrou que não é apenas um tiro certeiro que faz os inimigos arrefecerem: o barulho assusta mais do que a iminência do sofrimento físico. Sendo assim, eu gritava. Eu xingava cada zerg que abati, e sentia o pavor naquelas caras monstruosas antes da execução. Dizem que são mais inteligentes do que nós. Ó, sim, podem até ser, mas sangram e morrem do mesmo jeito diante dos fuzileiros.

            Começou como um dia qualquer: dormíamos no quartel em meio aos enjoativos odores que sempre permeavam locais repletos de soldados. O sinal tocou. Em pouco tempo estava pronto e segui para o refeitório. Engolia aquilo que chamavam de refeição e ia para a sala onde todos nos reuníamos a fim de receber as ordens do dia. O coronel era um homem de poucas palavras, austero, mas uma pessoa justa. Sempre podíamos contar com ele nas horas difíceis. Dizem que sua perna robótica é conseqüência de um resgate ousado em Tarsonis, quando desobedeceu aos seus superiores e lançou-se com o APOD-33 em pleno campo repleto de protoss: conseguiu embarcar seus homens, mas isso lhe custou a perna – esmagada em um impacto na cabine durante manobra evasiva. Naquela manhã eu ouvia o de sempre, sem muito interesse: fiquem em formação, forneçam o perímetro, explodam o ninho zerg e, se possível, voltem com vida. Já me acostumara. Servia como fuzileiro há cinco anos e aprendera mais sobre as dificuldades da sobrevivência do que os anos de juventude gastos com a educação formal. Ninguém me esperava no “mundo real”, não tinha motivos para voltar para casa, para o tédio. Ali eu tinha minha verdadeira família, pessoas que se importavam comigo, que morreriam por mim, que tombariam comigo, se necessário. Terminadas as ordens, permaneci junto aos companheiros de meu pelotão e fomos recolher nossas armas.

            Ainda era manhã quando partimos, escoltando os tanques. Tudo naquele planeta era asfixiante. Uma nuvem pesada pairava sobre nossas cabeças, os vulcões lançavam, incessantemente, suas podridões na atmosfera. Vinham misturadas ao característico cheiro de carcaça zerg queimada: confesso não saber o que essa raça fazia com seus mortos, mas, nessa terra especificamente, todos nós imaginávamos o fim que tinham... Procurávamos marchar em território com grande número de colinas ou qualquer outra proteção de elevada altura. Era imprescindível que existissem: a cada três horas uma gigantesca tempestade varria o planeta de norte a sul; uma onda cinzenta arrastava-se acima do solo, trazendo a toxidade dos vulcões em nossa direção. Posicionávamos, então, os tanques atrás das colinas e permanecíamos atrás deles: isso não evitava nosso contato com a substância, mas nos privava da maior parte dos resíduos sólidos de grande dimensão que passavam voando diante de nossos olhos. A paisagem ali era modelada a cada três horas. Dificilmente sem equipamentos alguém alcançaria um determinado local: fácil perder-se ali, deixado para morrer sob as garras dos monstros.

            Durante o trajeto não encontramos zergs. E aquilo, com toda a sinceridade, não estava correto. Eles adoram fustigar nossas tropas com seus batedores a todo o momento. Raramente algum dos nossos morre durante esses ataques pequenos, mas servem para nos atrasar. Contudo, em meu rádio somente escutava meus companheiros e meus olhos apenas observavam a imensidão rochosa coberta pelos gases. Veio a segunda tempestade. Dessa vez parece ter durado mais. Ficamos quase quarenta minutos agachados perto dos tanques, ouvindo as piadas de seus tripulantes, que cantavam uma música muito bonita de centenas de anos atrás, onde o homem pedia à mulher para amá-lo com ternura. “Minha mãe dizia para eu estudar, para não entrar na vida de soldado. Mas sou teimoso, olhe no que deu” – chamou a minha atenção um amigo ao lado. E seu pai, o que dizia? – perguntei. “Filho, fuzileiros têm quantas mulheres desejarem” – respondeu. Belo argumento; quantas conseguiu até agora? “Cinco” – disse olhando para os dedos da mão. Seguimos viagem.

            Era quase final de tarde quando chegamos ao local onde muitos dos nossos estavam de prontidão, guardando a área de desembarque das companhias que chegariam no dia seguinte. Fomos distribuídos pelo perímetro do campo. Eu e mais três companheiros ficamos encarregados pelo bunker do setor noroeste: o que ficava de frente para um vazio terrível, sendo a última edificação terran no planeta; éramos, agora, a fronteira final de nossa presença. Precisávamos redobrar a atenção: qualquer ataque inimigo teria de, necessariamente, passar pela gente. Rendemos nossos colegas e tomamos seus lugares. O bunker não era o melhor lugar do mundo, porém, mantinha-nos fora do contato com a atmosfera nauseabunda dali. E havia comida. O sabor não era muito diferente do encontrado no refeitório do quartel, mas depois de sete horas de marcha, qualquer coisa comestível serviria. Não estava muito acostumado a esse tipo de edifício: geralmente eu sempre fui da linha de frente, um “nascido para morrer” como chamamos entre nós. Estar abrigado, seco e alimentado era exceção à regra. Melhor pra mim. Relaxei e fui vasculhar o lugar. Embora para quatro pessoas apenas, o bunker era maior do que imaginava. No térreo era preciso, após adentrar, passar por estreitos corredores para se chegar, cada um, a seu ponto de armamento. As passagens tinham saletas que iam de pequenos depósitos de suprimentos a banheiros. No subsolo encontravam-se os maquinários responsáveis pela refrigeração e iluminação do conjunto. Voltei ao meu posto e terminei de esvaziar uma garrafa de bebida que meu companheiro havia encontrado escondida entre os cartuchos de C-14 e deixara-me de presente.

            A noite avançava, esfriando o ar e fazendo com que os gases vulcânicos baixassem. Conseguia, de minha posição, avistar apenas poucas centenas de metros à frente, e isso devido às luzes de nosso acampamento. Vez e outra, um ruído rasgava o silêncio. “Eles estão lá fora...” – escutei o sussurro em meu rádio. Eu permanecia tranqüilo, sabia que estávamos em um local privilegiado, onde nenhum zerg jamais conseguiria entrar: os sensores de aproximação jamais falhavam. Algumas horas fluíram preguiçosamente e, o que antes era atenção, logo se transformou em distração. Embora não nos víssemos, conversávamos, os quatro, pelo rádio, contando histórias, assoviando, falando sobre as namoradas que aguardavam seus amantes em casa. O estoque de bebida foi diminuindo rapidamente, e nossa alegria aumentando vertiginosamente. Já era madrugada e eu começava a pensar em nossa retirada dentro de poucas horas.

            Foi quando o chão tremeu. Mais forte do que o de costume: os vulcões, ao expelirem suas sujeiras, não faziam tanta questão de afirmarem sua superioridade. Paramos para escutar. “O que foi isso?”. “Apenas mais um vulcão” – respondeu um. “Talvez seja a tempestade se aproximando, já está na hora dela” – argumentou o outro. Sim, acho que é a tempestade – eu disse. Apertei as vistas para enxergar o mais longe possível. Um leve clarão borrado se formava no horizonte. Era a tempestade vulcânica. Mas dessa vez ela vinha mais forte, estranhamente mais potente. Avisei meus companheiros. Contudo, não estava preparado para o que vi: uma gigantesca onda quilométrica vinha em nossa direção, com raios atravessando seu interior. Olhei o mais alto que a abertura do bunker me permitia. E não vi o fim daquilo. Não enxerguei o céu, aquilo simplesmente vinha se arrastando em nossa direção. Estejam preparados! – gritei no rádio. Logo a onda caiu sobre nós. Veio trazendo destruição ao acampamento. Varrendo nossos soldados que estavam desprotegidos, imaginando ser somente mais uma simples tempestade. Tudo tremeu. “Os tanques! Não é possível, os tanques se foram!” – ouvi meu companheiro, pasmo, falar. O som era ensurdecedor, e os maiores gritos em meu rádio não passavam de meras confissões. A luz falhou. Dentro e fora do bunker. Piscou. Apagou.

            O sistema de comunicação sem fio ainda funcionava, mas estávamos, todos, agora às escuras. “Vocês me escutam?”. Afirmativo. “Caras, o que foi isso?!”. “Acalme-se, fuzileiro, vamos redobrar a atenção”. “Mas que porcaria, não enxergo nada”. “Querem uma boa notícia? Os sensores foram desativados...”. “Mas que...”. Eu vou à sala das máquinas tentar religar o sistema. “Negativo. Continue em seu posto, estamos em estado de emergência”. Não podemos ficar sem os sensores, nossos reforços lá fora devem estar todos mortos; vou descer – empunhei o C-14 e parti. A tempestade passara, deixando o silêncio típico de lutos. Ouvia o arfar de meus companheiros enquanto descia a escada, chegando ao maquinário. A sala possuía luzes de emergência. O tom avermelhado delas transformava tudo em vultos: pesados seres de metal descansavam ali. Fui ao armário de suprimentos e peguei uma lanterna para enxergar melhor os painéis de controle. As chaves haviam caído e tentei, em vão, ligá-las. Conferi os dispositivos de segurança, estavam todos intactos, nada havia queimado. Quando chutei o gerador com raiva, um estrondo no andar de cima me fez prender a respiração.

            “Caras? Caras?!” – timidamente indagou um companheiro: o medo estava em sua voz. “Calado!” – falou outro – “Escutem”. Ouvi ruído de patas raspando o piso acima de mim. Agora só conseguia escutar o ruído das respirações deles através do rádio. “Eles estão aqui” – sussurrou alguém. Os passos atravessavam os corredores apertados, cautelosos. O barulho de mandíbulas se abrindo infestou o ar: quantas vezes já tive contato com ele, quantas vezes já o presenciei antes de a morte sorrir para mim! Houve um breve momento de incômodo silêncio. Fechei os olhos: sabia o que estava para acontecer. “Zergs! Zergs! Maldição!” – tiros quase estouraram meus tímpanos – “Desgraçados! Ah...” – a comunicação foi interrompida. Engatilhei meu rifle. A agitação lá em cima deixaria qualquer pessoa descontrolada. Respirei fundo e, cuidadosamente, escalei a escada para fechar a escotilha que dava acesso ao térreo. Voltei ao meu lugar. Corri entre os armários, procurando armas, mas nada havia – tudo estava acima. Mais gritos chegaram ao meu rádio. Um fuzileiro abateu um zerg antes de tombar. Agora só restavam dois de nós. “Você está aí embaixo? Responda!”. Sim, estou aqui. “Vou tentar chegar aí, estou perto”. Fui para a escotilha, esperando meu companheiro. Tiros de C-14 ecoavam pelo bunker, aproximando-se. “Abra, abra! Estão bem atrás de mim!”. Levantei a escotilha e o vi correndo em minha direção. Ele se jogou para dentro, mas, infelizmente, não a tempo. Um grito de dor lhe estampou o rosto. “Ajude-me, por favor!”. Um zerg havia lhe agarrado as pernas. “Não me deixe morrer!” – puxava ele para baixo, enquanto atirava no escuro, tentando acertar o monstro. “Ah!” – suas mãos afrouxaram. Com força o puxei, mas somente metade de seu corpo caiu na sala, banhando minhas botas. Fechei a escotilha sob fortes batidas dos inimigos do lado de fora.

            Escondi-me atrás do gerador, esperando o inevitável. Primeiro eles tentaram forçar a entrada, grunhindo de ódio. Depois uma calmaria apossou-se de todo o bunker. Bem, sabemos o que sucede a calmaria... Três fortes pancadas foram suficientes para arremessar a escotilha longe. Desliguei minha lanterna, aguardando que viessem. Com o canto do olho observei duas grandes figuras escarlates entrarem na sala, farejando sua presa. Hydralisks. “Quatro mil músculos cada um” – foi o que nos ensinaram nas forças armadas. Eu tinha seiscentos e vinte e nove. Agarrei meu C-14 e respirei fundo. Tinha de contar com a vantagem de serem coisas enormes, tendo de permanecer em linha para se movimentarem ali. Pulei da escuridão para o centro da sala e acertei uma rajada certeira nos enormes dentes afiados do que estava na frente, abrindo-lhe a cabeça ao meio. O que estava atrás escalou o corpo do primeiro rapidamente e disparou seus espinhos. Um deles atingiu minha perna esquerda, fazendo-me cair. Ele se jogou sobre mim com suas mandíbulas e garras que pareciam facas. Protegi-me com meu C-14, lutando para manter a criatura o mais afastado possível. Já começava a perder minhas forças, e me pus a rir, lembrando-me do que meu pai dissera. Uma força correu por meus braços, empurrando o zerg para trás com uma coronhada. Levantei-me o mais rápido que uma perna machucada permitia e encarei a besta. VOCÊ QUER UM PEDAÇO DE MIM, GAROTO? – e pressionei o gatilho bem fundo, abrindo buracos em seu corpo alienígena, espirrando seu fétido sangue em toda a sala. Meu peito doía com a respiração ofegante. Fiquei um tempo em silêncio, apurando meus ouvidos, mas nada veio, não havia mais zergs no bunker.

            Subi os degraus e vi meus companheiros mutilados, mas levando consigo alguns monstros. Recolhi suas identificações e cheguei à entrada do edifício. Em toda a escuridão que varria nosso acampamento, avistei uma luz, bem ao longe, sumindo. Reconheceria em qualquer planeta: era um tanque dos nossos. Corri em sua direção, ao mesmo tempo em que tentava ajustar a freqüência de meu rádio para pedir ajuda. Pulando os escombros, vi mais fuzileiros mortos. Havia sido uma carnificina. Ainda existiam zergs por ali e, por mais que tentasse passar despercebido, acabei sendo notado e urros ecoaram pelo campo. Apertei o passo, deixando o rastro que escorria por minha perna. Atirei em alguns, sempre correndo e pedindo resgate. Em meio a chiados, ouvi uma resposta. “Aqui é... ente... est...os a caminh...”. Vi o tanque virando. Minha esperança redobrou enquanto os espinhos de zergs passavam zunindo sobre minha cabeça. Rock n’roll – gritei quando já estava bem perto e via meus companheiros esticando o braço para me subirem. Foi quando senti um tremor sobre os pés. Do chão, um zerg enorme brotou, arremessando-me longe. Então tudo escureceu...

 

            Abro meus olhos e vejo as conhecidas pupilas negras rodeadas por leite. Tive outro pesadelo. É sempre o mesmo. Há anos as imagens não me saem da cabeça. Fui trazido para Moria após aquele dia. Os tempos mudaram. Para melhor ou pior, não sei. Eu também mudei. Casei-me. Sinto que a vida poderia ter sido menos difícil se eu tivesse feito escolhas diferentes. Sinto que teria um olhar risonho de minha esposa se não fosse pelo meu passado. Mas essa foi a minha vida. E agradeço por, ao menos, ter esses olhos curiosos e preocupados comigo.

Olhos que contrastam com todo o horror que presenciei naquele planeta.


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