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Monólogo

Ao falar, mantinha os olhos afastados de quem escutava, ao seu lado.

"Eu não saberia dar valor a tudo isso. Não eu. Nada disso me é necessário; ou me importa...

"Não sei como lhe explicar... mas... imagine uma fotografia. Colorida. Uma paisagem, talvez. E nessa foto há um destaque feito com caneta. Você seria esse destaque, entende? Agora... esse tipo de fotografia seria o comum para as pessoas. O correto, penso eu, seriam todos pensarem dessa maneira.

"Porém, comigo é diferente. É como se a fotografia estivesse em preto e branco e você fosse a única coisa colorida nela. Percebe a diferença? Você não faz parte do todo, é única. E, para mim, esse todo não tem importância alguma.

"Enfim, não se culpe. Eu é que vejo tudo deformado. Sempre observei as fotos sem cor. Sempre. Ou seja, nada disso me importa. E você foi uma cor nisso tudo, mas, na essência, eu continuei a não enxergar a coloração da vida."


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