Todos têm uma memória sobre circos. Comigo não é diferente.
É um final de tarde. Estou sentado com meus pais, entre eles, segurando o saco
multicolorido da pipoca. Recordo os olhos de minha mãe: ela sorri e sua
bochecha ganha um volume, ela saboreia a pipoca. Sinto uma pesada mão em meus
cabelos. Estranhamente, o peso não é uma agressão. A minha esquerda, observo
meu pai entre seus dedos e os cabelos de minha franja – toda despenteada. É um
homem elegante, de boa postura, dentes brancos e lábios viciados a se
contorcerem à direita quando está pensativo. Estou sentado, feliz. A terceira
fileira. A platéia está lotada. Uma época aurífera para os artistas
circenses...
A luz se
apaga, o apresentador entra na arena e diz as velhas frases decoradas. Um gordo
bonachão. Parece ter três queixos, seu suor cai em bicas. Dedos balofos tateiam
o bolso e tira um pequeno lenço já encardido. Seca-se. Termina sua
constrangedora apresentação e os malabaristas correm pelo palco. Um dos
malabares cai, mas não é motivo para aflição – todos na platéia sabem a
dificuldade de se equilibrar objetos. Não os condenamos pela clave que atingiu
o solo. Humanos. Errar. Sim, perdoaremos. O espetáculo prossegue, é a vez do
cuspidor de fogo. Entra vestido como um indiano, ou um árabe, não consigo
diferenciar pois meus olhos estão vidrados nas labaredas que beijam o topo da
lona amarela. Quando chega mais próximo da platéia, minha mãe se assusta e
agarra meu braço. Olho para ela: está assustada, quase não crendo que sairia
viva daquele lugar. Uma velha fobia de minha mãe: o fogo. Dou uma risada
debochada, afinal, sou um pequeno homem e devo passar segurança a minha mãe.
Ela afrouxa seus dedos e larga meu braço. Agarra mais algumas pipocas e
arremessa-as para a boca, olha-me e dá uma piscadela. “Estou bem, estou bem” –
dizem aquelas pupilas escuras que amei desde o dia em que nasci. Minha primeira
paisagem, é verdade. Tenho certeza de que ao vê-la pela primeira vez pensei:
“Uma lua negra em um céu branco, assim deve ser o Paraíso”.
A seguir,
vieram os animais. Um enorme elefante preguiçoso arrancou berros de indignação
do seu adestrador. Simplesmente se recusava a levantar a pata para chutar a
grande bola azul que estava no centro da arena. O leão foi mais aterrorizante:
quase que suas unhas acertaram o rosto do homem com chicote. Eu me vejo ali,
naquela noite já. Um menino franzino. Curioso. Devorando o pacote de pipoca.
Degustando cada segundo daquele dia de circo. Ah, eu amava o circo! E sorri ao
ver o grupo de palhaços chegando em sua engraçada charrete espalhafatosa. Meu
pai sussurrou-me: “É a parte de que mais gosto!” E não era à toa: suas caras
pintadas, seus narizes de bolas vermelhas, seus sapatos compridos, tudo era
realmente bizarro e divertido. Os palhaços fizeram suas piadas, e eu ria de
chorar. Em certo momento, iam escolher alguém da platéia para auxiliar em um
número. Eu era tímido, extremamente envergonhado. Encolhi-me perto de meu pai,
disfarçando, olhando os grãos de milho que restaram no fundo do pacote. Percebo
uma forte luz em minha direção. Não quero acreditar. “Não pode ser” – penso.
Mas é. Surdo pelo nervosismo, levantei a cabeça e vi que os palhaços, meus pais
e o resto do público me olhavam, sorrindo, batendo palmas. Suas bocas mímicas
logo ganharam tons e distingui um “Vá lá, garoto!” de um “Mãe, eu queria ir!”. Minha mãe me empurrava
com os olhos. Sem opções, desci a arquibancada de madeira e fui ao centro do
palco.
Um deles me
colocou sobre o palanque improvisado especialmente para o número. Trouxeram
halteres, dos mais variados. Os palhaços levantavam, com fingido enorme
esforço, os mais leves, quase minúsculos. Todos riam. Porém, as luzes se
apagaram, deixando-me em destaque. O grupo foi ao canto do palco e trouxe um
halter muito grande, dos que eu via atletas levantarem. Por gestos, entendi que
eu devia erguê-lo. Com receio, segurei a haste e puxei. Surpreendentemente,
levantei o halter sem força alguma, percebendo que era falso. Ergui acima de
minha cabeça, sorridente. Todos riam. Todos batiam palmas. Nesse instante, um
dos palhaços, vestido com roupa roxa – não esqueço, segurou e abaixou minha
calça. De cueca, vi as pessoas arregalarem os olhos e rirem de se contorcer.
Fiquei estático, sem saber se devia largar o halter ou continuar, na esperança
de que teria minha calça posta ao seu lugar de origem. Com a vergonha, com a
humilhação subindo-me à cabeça, joguei o objeto e corri para fora do circo subindo
o tecido, aos prantos.
Meses se
foram. Agora estou na rua com meus pais, caminhando à noite. Alguém ou alguma
coisa se aproxima. Meu pai entrega seu dinheiro. Vejo uma luz e fico
temporariamente surdo. É minha mãe caindo. Ela está segurando meu braço,
assustada. Já não sorri. Logo é meu pai a se juntar ao chão úmido. Fico parado,
sem saber o que fazer. Recordo-me daquele dia no circo. Percebo que alguém ou
algo se afasta correndo na escuridão.
Sua face
pálida estava iluminada pelo canal fora do ar. Ajoelhado em seu quarto sujo e
mofado. Mãos juntas. Seus olhos tremiam sob as pálpebras cerradas; rezava para
aquele homem preso ao crucifixo na parede. Deixou algumas gotas caírem pelo
rosto branco. Deixou os braços caírem. Deixou os dedos buscarem o pequeno
estojo enferrujado que jazia sob a estante do televisor. Abriu-o. Retirou seu
velho companheiro: um bisturi que adquirira de forma inapropriada, numa noite
de chuva, próximo à lona do circo da cidade. Vira quem o abandonara. Um homem
alto de roupa roxa que, escondido nas sombras, forçava as pernas de uma mulher
chorona com a lâmina encostada em seu pescoço fino. Quando avistou o menino,
correu, largando a mulher e a arma. Envergonhada, ela também fugiu.
É o quarto dele que vejo agora.
Naquela noite... Está de costas para mim, ajoelhado com um bisturi em mãos.
Observo, quieto em meu canto: há muito desejo esse encontro. Escuto soluços
baixos e concentro minha visão no que está fazendo agora.
O homem de camisa regata olha o
crucifixo e pede perdão. Desce a navalha sobre a pele branca do braço esquerdo,
abrindo um profundo talho. Larga o bisturi e agarra um pedaço de papel.
Rasga-o. Escreve algo e o dobra muito bem apertado. Quase minúsculo, o papel é
inserido na fenda aberta gotejante. Sua face se contrai e, por breves
instantes, aquele sorriso de um ser desgraçado dá lugar a lábios trêmulos: está
orando. Repete o ritual, dessa vez, no outro braço. Percebe-se em todo o seu
dorso inúmeras cicatrizes retilíneas, que deixam, minimamente, protuberâncias.
De todas as suas atitudes, eu
jamais esperaria aquilo. Estou em seu quarto, pronto para imobilizá-lo: foi muito
fácil chegar aqui. Caminhava em sua direção quando fui interrompido por um
balbuciado “Olá. Não é bem-vindo, mas já que está aqui... sente-se, por favor”.
É noite e seu televisor está
ligado, sintonizando o nada. Sento-me em sua cama enquanto vejo aquele homem
devolver o bisturi ao estojo, tirando, dessa vez, um carretel e uma agulha
curvada. Sei bem o que é aquilo. E conheço a dor dos pontos. Muitas vezes já
tive de fazê-lo sozinho. Foi meu pai quem me ensinou. Saio da escuridão do
corredor de lona amarela, cego pelo pranto. Devo ter corrido um quarteirão ou
mais antes de tropeçar em meus próprios pés: enroscados na calça mal vestida.
Minha perna foi de encontro a uma pedra. Cortou-me pouco, mas o suficiente para
que a visão de sangue me apavorasse. Comecei a gritar, chamando por meus pais.
Meu herói, meu pai, ouviu e logo estava ao meu lado. Em casa, ele esterilizou a
agulha e fechou o sangramento.
“Pois bem, o que veio fazer
aqui?” – pergunta-me com o velho sorriso de volta. Sentado ao pé da cama, passando
a linha pela agulha. “Estou ficando velho, não consigo achar o maldito buraco
da agulha!”. “Nós dois estamos velhos...” – respondo, tomando os materiais de
sua mão. “Estou aqui pelas mortes de hoje. Mais mortes... Enfim, estou aqui
para levá-lo de volta”. “Ah, o meu velho lar me aguarda? E o que será dessa
vez? Já consertaram o gerador do Asilo? Meu caro, da última vez os choques
estavam um tanto... fracos; só me fizeram cócegas”. Entrego a linha passada
pela agulha. Ele sorri. “Para que servem esses papéis?”. “Estou enterrando meus
pecados sob minha pele, simples, não?”. “E desde quando você crê em pecados? Se
acreditasse realmente em Deus, não mataria”. “Acreditar em Deus faz parte dessa
vida, não acha? Faz parte da atuação, da sua e da minha, não se engane! Ou acha
que se fantasiar como um idiota é normal? Em outubro talvez, mas não todo santo
dia. Somos atores nesse pequeno palco. Eu diria que meus pecados estão à flor
da pele, e os seus? Você é tão coitado quanto eu, tão desgraçado por Deus quanto
eu. Mas... isso é um grande jogo! Joguemos. Acreditemos em um ser onisciente.
Olha, sinceramente, adorei que me visitasse essa noite. Estava me preparando
para você. Agora o picadeiro está completo: minha fama de coveiro de pecados se
espalhará. O respeito por mim, crescerá entre os meus iguais!”. “Há muito tempo
que faz isso?”. “Há anos... os idiotas do Asilo têm medo de palhaços, sabe como
é: nunca me obrigaram a ficar nu, nunca tiveram a curiosidade, o fetiche de ver
essa carne branca; muito menos quiseram saber se o que tenho mais embaixo
também foi afetado pelo ácido” – e riu, levando a mão entre as pernas. Aquela
maldita gargalhada que escuto sempre. “E qual foi seu primeiro pecado?”.
É noite e estamos ainda em seu
quarto. O canal de TV mudou do chuvisco para as faixas coloridas. De todas as
cores, iguais a um saco de pipoca circense. Fiz minha pergunta. Ele deixa de
sorrir. Levanta-se e senta ao meu lado. Devolve o carretel e a agulha: seus
braços continuam a sangrar. Fica quieto por um tempo e depois me encara. Vejo
seus olhos. A pupila escura na imensidão branca. Mas isso não é o Paraíso. É a
pura expressão do ódio, do desgosto. “Meu primeiro pecado nem fui eu que cometi
diretamente” – ele abaixa as vistas – “Ainda era muito novo, e burro. Foi
quando a conheci no colégio. Não ria! Sim, eu estudei também. Como vê, não
serviu para nada, mas fui educado... Continuando: eu a vi na primeira aula de matemática.
Na terceira carteira da quarta fila após a janela da sala. No total eram cinco
fileiras. Eu ficava próximo à porta. Na segunda carteira, para poder ficar
encostado na parede durante a sonolência que certos professores causavam. Ela
era uma garota de cabelos-de-fogo! De estatura média. De olhos castanhos.
Bonita. Muito bonita. Ela costumava me causar uma impressão de estar diante a
uma mulher nobre, medieval. Nunca me cansaria de olhá-la. Namoramos escondidos,
jamais ninguém soube. No final daquele ano, ela foi viajar, e não voltou...
“Certa vez, li em algum lugar que
o cérebro faz questão em apagar certas memórias ruins, tais como traumas. Mas,
em outras ocasiões, esse organismo falha, e torna as lembranças sempre vivas,
sempre marcantes. Assim ocorreu. Como a notícia me chegou? Por um colega de
classe. Ele não sabia de nada, como disse. Falou um pouco assustado, um pouco
pesaroso. Creio que não me falou muito sério, pois sempre brinquei com a
questão da morte. Mas ouvi. E, pela primeira vez, não sorri. Ele estranhou, mas
não comentou nada; voltou à aula. Fiquei ali, no fim do intervalo, parado na
grade que dava para a quadra de esporte. Fui embora. Os tormentos daquele dia
foram se amortizando com o tempo. Mas o amor não.
“Compareci ao fim do funeral. Assisti a tudo de longe. Ninguém me
conhecia. Vi quando fecharam a tampa do caixão. Vi quando o levaram à cova. Vi
quando o abaixaram. Vi quando depositaram flores sobre o berço, antes dos
empregados enterrarem para sempre quem amei. Continuei no anonimato... E você,
meu amigo, é o único que sabe dessa história. Estranho, não? Justamente você.
Sinto-me à vontade com você” – e aquele ser voltou a me olhar. Foram os olhos
mais tristes que já notei. Ele me apertou o braço com sua alva mão,
confortando-me. Esqueci-me que estava sangrando: peguei a linha com a agulha e
comecei a costurar-lhe os cortes.
É noite e o deixo atrás das
grades. Ele ri e me agradece pelos cuidados. Sei como se sente. Por instantes,
lembrei de meus pais. Devo admitir: jamais gostei de palhaços.