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Menina dos lábios de veneno

Pouco depois de nascer, ela matou a madrinha. O cachorro veio um tempo mais tarde, aos 2 anos de idade. Os pais ficaram horrorizados com o defeito da garota: ela tinha lábios venenosos. Ninguém sabia explicar o porquê da menina tirar a vida de tudo o que lhe vinha à boca. Ela não podia dividir um doce. Nem os talheres. Nem os copos. Nem o saco de pipoca no cinema.

A pequena foi ensinada pela mãe: “Encolha os lábios, querida, para não deixar em ninguém a sua ferida”. O pai era contundente: “Se beijar meu papagaio de estimação, não lhe deixarei nenhum dente”. A mocinha grudou um lábio no noutro e apertou cada vez mais: logo sua boca não passava de um fino risco sem graça. Não era notada por ninguém. Ao tomar gosto pelo oposto, nenhum garoto lhe observava, lhe galanteava. Todas as garotas da rua eram amadas, e todos os garotos tinham o seu rabo-de-saia. Mas a menina dos lábios venenosos, não.

Certo dia ela esbarrou num moço de luvas. Ao explicar sua situação, ouviu como resposta: “Mi-minha maldição são as mã-ãos. Desde que nas-ci não sinto-to o to-que-que-que de nada; nem de mi-im”. Pobre menino imasturbável que enegrecia aquilo que roçava. A garotinha teve piedade e a ele se ajuntou. No intervalo das aulas andavam de mãos enluvadas, brincando de felicidade.

No entanto, choravam juntos ao perceberem que lhes faltava aquilo que todos os colegas faziam: beijar-se. Os amassos dos outros alunos eram invejáveis; é bem verdade que o menino-luva e a menina-veneno já conheciam o corpo um do outro muito bem, mas, os lábios, aquilo que nos difere dos animais... isso... era-lhes impossível. Sem beijinhos, só carinhos. Situação insustentável. Que ficou pior quando a idade mais hormonal chegou: meninas contavam sobre suas relações, meninos contavam vantagens; menino-luva e menina-veneno nada contavam.

A vida se tornou insuportável aos dois. Nenhum médico apontava a cura. O desejo de aproximação era tremendo. Inevitavelmente a tristeza se apoderou dos dois... Depressivos e cabisbaixos, foram se isolando do mundo ao redor. Quando mais nem os pais ou qualquer outra pessoa conseguiu notar a presença daqueles dois infelizes seres, eles resolveram que era hora de dar um basta a tudo.

Arrumaram um quarto de motel num local distante. Ficaram longos minutos se olhando sem nada dizer: sabiam o que viria a seguir. Despiram-se e, pela primeira vez em suas insignificantes existências, as mãos ficaram livres e os lábios retornaram ao contorno original. Ela achou as mãos dele lindas. E ele disse que nunca vira lábios tão fabulosos. Ainda queriam consumar um ato e, deixando de lado a mortalidade de seus corpos, entregaram-se um ao outro. Os venenos de seus seres agiam lentamente... o tempo suficiente para, pela primeira e única vez em anos, desfrutarem da paixão. Quando os fracos suspiros reinavam, abraçaram-se deitados na cama. Ele tomou seu delicado rosto feminino entre as mãos, e ela o beijou com suas últimas forças.

E ninguém notou aquela história de amor. Ficaram satisfeitos por terem se livrado das aberrações que assustavam a todos. Sequer os pais prantearam os jovens.

A muitos quilômetros dali um gatinho morria. Envenenado.


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