As
deliciosas ondas espumantes, douradas como as do rio Von embalavam o sobe e
desce da nau guiada por homens de braços fortes. Ele permanecia em pé, com o
vento em seus longos cabelos loiros, segurando cuidadosamente seu martelo
mjölnir. Perdia-se em pensamentos de glória e fortuna, de crânios rachados e
mulheres nuas. À deriva estava, até uma mão pousar em seu ombro musculoso.
Virou-se e notou um lindo ser feminino de olhos rubros e tez prateada. Ela não
estava ali antes; simplesmente surgira nas brumas daquela madrugada. Agarrou-a
e roubou seu hálito de mel. Deslizou a mão livre pelo corpo da mulher,
apalpando a tudo o que lhe deixava feliz. Quando desceu mais, estancou. Sentiu
algo crescendo entre seus dedos. Olhou assustado para aquela coisa masculina
que se sobressaía da vestimenta. A mulher-homem piscou e mandou um beijo.
Abobalhado, o loiro deixou seu martelo cair, abrindo uma enorme fenda no casco
da embarcação. Gritos de pavor ecoaram. Graças a ele, um naufrágio acontecia.
Entre os rostos dos homens apavorados que eram tragados pelo mar, reconheceu um
deles; não conseguia ouvir, mas, lendo os lábios, entendeu perfeitamente:
“Thor!”
“Thor! Seu parvo bêbado, estou
falando!” – e a hipnose que aquele gigante chifre de hidromel lhe infligia foi
quebrada, derramando-se as ondas douradas sobre a mesa da taberna. “Por Odin,
Loki trapaceiro, o que fazes nesse lugar, importunando um deus que bebe?”. “Tua
esposa Sif te espera em Asgard. É chegado o momento: Trolls nos atormentam.
Cumpra teu dever!”. O forte homem sorveu o restante da bebida em um gole só e
depois esmigalhou o chifre em sua mão. Impaciente, Thor cambaleou porta afora.
Vida miserável – pensava consigo mesmo –
essa de sempre lutar. Ano após ano esses desgraçados voltam. Não se cansam de
apanhar? Por que nunca morrem?! É sempre assim... Defendo meus irmãos
vagabundos, limpo a sujeira dos reinos e retorno ao lar. Minha esposa me espera
na cama, tentando-me. O pior é que nada posso fazer! Para cada noite de amor,
um filho nasce! Não pretendo repovoar Asgard somente com meus herdeiros. Hoje,
quando chegar lavado com o sangue dos trolls, direi à Sif: “Basta, mulher, não
mais me deitarei com você! Chega de crianças correndo por aí, derrubando
mjölnir, quebrando ânforas. Afaste-se de mim”. Sim, falarei isso. Tomarei meu
banho e voltarei à taberna. E beberei à vontade, em paz!
O deus de nobre coração chegou ao
palácio. Vestiu a armadura e partiu para mais um dia de trabalho.
***
Estava gelado ali. O inverno chegara há
sete dias e parecia que seu ápice ocorria de forma inadvertidamente rápida.
Pela janela era possível avistar os galhos sem folhas, nos quais repousavam as
gralhas escuras. Lá dentro, um homem velho estava diante de seus olhos. Com sua
calvície avançada e seus óculos salpicados por caspas. Um uniforme branco sobre
sua roupa... Dizia algo a eles, mas o rapaz ali sentado parecia prestar mais
atenção ao frio e às gralhas. Sentiu a pele de sua mão ser pressionada com mais
intensidade. Acordou e olhou para a esposa a seu lado. Seus lábios começavam a
tremer. Ela vai chorar, eu sei – deduziu de forma nada brilhante; pois isso não
lhe era novidade: o seu pranto vinha às vezes. Em algumas ocasiões, causado por
ele. “Culpa minha” – argumentava. “Desculpe” – pedia; mas já era tarde: aquelas
malditas lágrimas brilhavam e caíam sobre seu rosto vermelho. Ela não se
incomodava em chorar, e, ele tinha certeza, isso estava iminente na sala do
médico.
“O seu caso é complexo, foi constatado
que o seu marido é estéril. Não há nada que possamos fazer. Vocês podem pensar
em inseminação ou talvez adoção. Conheço instituições sérias...” – “Não!” – o
homem interrompeu o doutor. A mulher o mirou com espanto.
Na sala comum do hospital, discutiram.
Ele não queria criar um filho de outra pessoa, não aceitaria que sua esposa
fosse fertilizada com sêmen alheio. Ela dizia que era ignorância, que poderiam
fazer isso sem culpa alguma, que o filho gerado seria, sim, filho do casal. Ele
bateu o pé. “Nada disso aconteceria se você fosse um homem de verdade!” – ela gritou com sua voz embargada. Percebeu que
ferira o marido em seu âmago. Tentou pedir desculpas; pela primeira vez, as
coisas se invertiam, ela pedia
perdão. E o homem sentiu aquilo que a mulher conhecia nesses momentos, a
incapacidade de desculpar. Virou o rosto e caminhou para fora do edifício,
deixando-a com sua salgada água humana.
Desnorteado, caminhou a esmo.
Embrutecido pelas palavras da amada, seus olhos injetaram-se de sangue. Apertou
as mãos até perderem a cor. Parecia que sua cabeça era martelada por dentro.
Parou no meio da rua, observando as gralhas. Casais de gralhas. Cantos
diferentes. Felizes estavam simplesmente por viverem juntas nesse difícil
inverno.
***
Há vinte minutos comprara algo para lhe
aliviar a sede. Algo novo no mercado: “Mead”. Alto teor alcoólico. Gostou do
rótulo. Pagou no caixa e foi para o carro. Ligou o motor e partiu, degustando o
delicioso licor dos deuses. Subia rápido à cabeça a fermentação do mel. Bebia e
ouvia música. Em uma das curvas, deixou a garrafa escapar, tombando perto aos
pedais. Abaixou-se para pegá-la. Um grande impacto em seu carro surgiu...
***
A última coisa que viu foram as gralhas
voando devido ao barulho que lhe chegava aos ouvidos. E tudo silenciou.
***
Thor voltava de mais um dia de labuta,
ensangüentado. Primeiro atrelou seus bodes ao carro. Ajeitou mjölnir num canto,
bem seguro. Deu uma última olhada nos milhares de trolls mortos que fediam no
campo. Sorriu. Cobriu seus ombros com o manto e partiu. Seus bodes puxavam o
carro pelo ar, numa velocidade inacreditável. Desejava retornar logo ao lar,
para os braços de Sif.
***
O tumulto dentro do hospital, com
enfermeiros correndo para a porta, chamou-lhe a atenção. Secou as lágrimas com
suas mãos delicadas. Saiu também para ver o que acontecera, mas um pressentimento
feminino lhe dizia que algo dera errado aquela tarde...
Ao longe, viu os paramédicos socorrendo
seu marido. Tentando animá-lo. Em vão.
Começava a gotejar. Os nimbos haviam
chegado.
Em seu desespero, olhou para o céu. No
mesmo instante, um trovão ensurdeceu o ar...
Era Thor cruzando a imensidão em seu
carro.