O coração ainda lhe palpitava.
Rapidamente. Parecia que romperia a caixa torácica. O que aconteceu? Como pôde
ter acontecido? Fora arrastado da sala de cirurgia rapidamente. Por uma
enfermeira-anjo. Loira. Olhos azuis. Não muito bonita. Mas firme: pegou-lhe no
braço e o tirou de lá. Massageava o lugar que estava dolorido. Seu braço
esquerdo. Ele tentou lutar. Permanecer ali. Mas não conseguiu: agora, estava do
lado de fora. Corredor branco. Puro. Madrugada; ninguém quase circulava por
ali. Um forte cheiro de álcool: limpeza dos deuses. Luz forte. Ardiam os olhos.
Olhos injetados. Era a preocupação. O susto. Algo dera errado. Ia tudo tão bem.
Estava feliz. O nascimento de seu primeiro filho, ou filha, tanto faz,
importante que venha com saúde. Por que logo com ele? Por que com ela
justamente? Não poderia ser com a mulher de outro? Complicações aparecem nos
noticiários, mas... por que tinha de ocorrer hoje? E com ele? Passou meia hora.
Andava de um lado para o outro, esperando a porta se abrir. Eis. Azul-bebê.
Médico. Touca branca sobre os cabelos grisalhos. Óculos. Umidade na testa.
Desapontamento forçado: afinal, ele estava acostumado em prestar contas aos
parentes. “Senhor, sinto muito”. Ela? Ela... “Sinto muito, não resistiu”. Mas
ele havia visto ela ir para a mesa. Segurara sua mão quando dormiu. Ficou ali
ao lado, vendo o grande corte em seu ventre, observando o vermelho pastoso de
suas vísceras, notando um pequeno crânio em seu interior. Agora diziam que tudo
fora em vão? “Explicarei melhor quando o senhor estiver em condições”. As
pernas fraquejaram. Parede, preciso de uma parede. Recostou ali. Lábios
tremiam. Lágrimas gotejavam. E meu filho? “Filha...” E ela, inferno?! O médico
abaixou as vistas. Balançou a cabeça. O mundo acabara. Ali. Naquele corredor.
Não percebeu quando sentiu os joelhos baterem no chão frio. Limpo. Puro.
Encostou a cabeça nos braços. Eles no solo. Gritou. Mas não conseguia ouvir o
próprio som. Apenas sentia algo indesejável, inenarrável. Sua saliva escorria
formando uma pequena poça transparente. Seus olhos ardiam. Deitou-se em posição
fetal. Seguranças vieram. Tentaram lhe ajudar. Tentaram levantar aquele rígido
corpo que tremia. A muito custo o conseguiram. Ele já não tinha forças.
Gritava. O médico apenas olhava, calmo. Trouxeram-lhe um calmante. Aplicaram em
sua veia. Desejou que fosse veneno. Que findasse seu tormento. Mas não. Em
poucos minutos tinha arranjado as pernas. Agora conseguia andar. Quero vê-la.
“Por favor, acho melhor não, senhor”. Quero vê-la! “Se deseja...” Abriram a
porta. Só restava um auxiliar ali, ao lado dela. Em outra pequena mesa de aço,
uma criança dormia. Seus olhos nunca mais iriam se abrir. Olhou o bebê
primeiro. Uma menina. Seu corpo frágil. Inerte. Com as mãozinhas fechadas.
Parecia tranqüila. Uma menina. O seu sangue. A sua continuidade nesse mundo.
Fim. O enfermeiro deu os pêsames e cobriu-lhe inteiramente. Seu primeiro e
último cobertor. Havia comprado um tão bonito. Amarelo. Unissex. Serve para
menino ou menina. Tanto faz, desde que venha com saúde. Onde estava naquela
criança? Mas era bem mais bonito do que aquele lenço grande branco. Limpo.
Puro. Seu quartinho lá em casa. Todo arrumado. Presentes dos parentes. Todos em
vão. O berço havia sido deslocado para o quarto de casal. Dormiriam e
acordariam com o chorinho do bebê. Perderiam horas de sono, mas valeria a pena.
Era um sonho ter um filho. Desejavam tanto. Ela dizia muito que nascera para
ser mãe. Eu estava inseguro, achava que não seria um bom pai. Mas ela me
apoiava. Sorria. Com seus lindos dentes brancos. Seus lábios... Ela estava ali.
Deitada na mesa acolchoada. Haviam lhe fechado a incisão. Mas ela não voltaria,
ela não acordaria depois de algumas horas reclamando da dor, ela não iria para
casa com nossa filha nos braços. Morta. Será que percebera que chegava ao fim?
Dormia na hora do parto. Será que sentiu dor? Será que sabe que morreu? Por
favor, amor, tome conta da nossa pequena. Não importa onde você esteja, leve-a
consigo. O nosso fruto do amor. O amor daquela noite. Das muitas noites de
amor. O amor da nossa primeira noite. Você estava tão linda. Perfumada. Despi
seu corpo. Nua. Graciosa. Sua pele macia. Rocei-lhe os lábios. Seus seios
firmes. Suas mãozinhas que acariciavam meu corpo. Nossa insegurança. Seu corpo
quente junto ao meu. Uma certa dor. O seu sangue. O rompimento do hímen para o
início de nosso amor. Sua respiração ofegante. Nosso gozo. Os sorrisos de
felicidade quando acordamos no dia seguinte. E hoje, amor? Por que me abandonou
aqui? Você foi egoísta comigo. Levou nossa filha... Não me deixou nada.
Nada. O efeito do calmante passava.
Brotaram mais lágrimas. A boca aberta, salivando. Olhar embaçado: parecia que
ela estava entre ondas. Mais um grito. Um choro de dor. Soluços. Segurava seu
braço gelado. Caía perto da cama. Mãos na cabeça. Gritos. Só lembrou-se de ter
visto três pessoas se aproximarem. Desmaiou.
Era aquela maldita caveira novamente. - Ei, puto, chegue cá! E ela veio, meio cambaleante, com seu ritmado compasso de fêmur. Caveira mexicana. Sorria com os amarelados-pontos-temerosos-de-dentistas. Trazia um charuto entre os finos dedos da ossatura direita. - Mas o que faz aqui novamente, peste? - Sabe como é, caveirando... Invejando os que têm carne. - Porra, esse povo deve tomar um susto, hein! - Nem me fale. Não sei porque tanto medo. Uma caveirinha tão simpática como eu. Coçou as costelas. - O que é isso aí? - Isso o que? - Preso aí, velho. - Presente para usted. E retirou uma grande garrafa de rum. - Conseguiu onde? - Dei sorte. Geralmente nessa época, só encontro aguardente sem graça. Isso eu roubei de macumba de rico. Ele cuspiu. - Cacete, macumba?!