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Papoula

Sei que sumi “de mim” nos últimos tempos. A vida se tornou menos pesarosa, menos árdua. Sinto que estou em uma canção do Cartola, aquela “Alvorada”, que, entre belas frases, é cantada: “Você também me lembra a alvorada, quando chega iluminando meus caminhos tão sem vida...”. Um samba de raiz, batido com violão choroso, daqueles que fazem a gente se desgrudar do corpo e navegar pela nostalgia. Há muito não escrevo: não tenho sentido vontade de “desabafar”. Nem tenho o quê. Estou bem.

Então, por que escrevo agora?

Para falar de vícios. Tenho poucos, confesso. Ou talvez não. Talvez eu tenha muitos vícios e eles me proíbem, inconscientemente, de dedurá-los. Enfim, dos vícios mais latentes, a leitura e a música não se escondem de ninguém que me conhece. Tenho alguns livros, dentre os quais não li nem vinte por cento, e uns cd’s que trazem composições estranhas e, muitas vezes, desconhecidas. Como disse, esses vícios não são novidades. O que poucos sabem é do meu inenarrável sentimento de necessidade de flores. Bem, na verdade, de uma em específico, a Papoula.

Dizem que é uma flor perigosa. Sei que o ópio é extraído dela. Deixando-se de lado a dependência química produzida pelo ópio, ele pode, sim, em doses homeopáticas, ser um calmante eficaz. Eis o que você, leitor, pode gritar a plenos pulmões (caso tenha coragem de berrar ao ler algo): “Alex, tu és um drogado, um viciado em ópio!”. Grite. Pouco me importo. Mas posso me justificar: não é no extrato da papoula que me viciei, mas, antes, na flor em si. Quem já viu uma papoula saberá o que digo: tem uma beleza que não se compara a qualquer outra flor (até mesmo as minhas adoradas tulipas!). A papoula é única. Suas sementes podem ser provadas na culinária. Suas pétalas são marcantes. Perfume? Delicioso.

Carrego uma Papoula em meu coração. A mais linda de todas. Ela é linda porque sou apaixonado por ela? Não é bem assim, leitor... ela é linda simplesmente porque o é. Nasceu assim. Permanecerá assim. Meus olhos, míopes ou não, enxergam a beleza dessa papoula. Se as felicidades – como dizem – nem sempre estão tão perto da gente, posso corroborar: a mais bela papoula nasceu distante de mim. No entanto, veio por um sopro da vida parar diante dos meus olhos, entrando em minha vida. Quando o dia 31 de Dezembro trouxe o final de 2006 eu não esperava que o ano seguinte me traria tão adocicada surpresa. Mas trouxe... minha papoula, quem diria!, assinalou em sua vida a opção por ser historiadora. A faculdade, um lugar tão paradoxal, apresentou-me Papoula. Por uma questão ligada ao romanos (sempre eles!), soube da existência dessa maravilhosa flor. E que flor! Ela me instigou. Embora tenha tido um rápido deslumbramento de suas pétalas, só fui finalmente ver minha papoula uns dias após a conversa inicial. Ah, que visão, caro leitor! Ela veio e abraçou-me na estação de metrô, dizendo seu delicioso e sorridente “Oi!”. Linda, pensei comigo, deveras linda. E mostrei-lhe a faculdade naquele dia, embora ela já a conhecesse do dia de sua matrícula. Sim... não sou muito bom guia (também...), e naquela tarde choveu, e uma ligação nublou o sol da Papoula. Mas os dias seguiram, e pude ter mais contato com a flor. Por que ela sorri dessa maneira? Por que ela é tão bonita assim? Por que minha boca seca perto dela? Perguntas que passavam pela minha cabeça. Eu desejava a presença dela, pois, na época, voltávamos no mesmo ônibus; já falei para a papoula, mas confesso a você, leitor: eu a levava ao ponto mais longe da faculdade, para que aqueles minutos durassem mais, a presença dela me animava e eu a queria do meu lado. Por favor, não me julgue por esse ato: sei que cansei os pés da papoula, mas foi por uma boa causa! Eu a adorava e a queria perto de mim.

Um dia, deixei de esconder o que sentia e falei a ela o que sentia. Sou tímido. Sempre o fui. Sei que devo ter ficado extremamente vermelho nesse dia... a papoula poderá confirmar. Mas falei. E ela, temendo ter suas pétalas do coração machucadas, pediu um tempo para pensar. Nesse dia voltei para casa e chorei: sentia que seria rejeitado e que teria que afogar a minha paixão. A situação permaneceu assim por mais alguns dias, e, a cada dia, gostava mais dela. Eis que numa determinada tarde, nas escadarias do prédio da faculdade, veio a resposta em forma de beijo. Felicidade! Que adorável dia, caro leitor, que adorável sabor! Porém, pouquíssimo tempo depois, ouço a voz dela me dizendo que aquilo não deveria continuar. Foi uma noite de choro dolorido, com pitadas de frustração... Mas já era tarde: eu a amava; sim, a amava, com toda a certeza. E, ouvindo o conselho de um amigo da cidade de Santos, não desisti de amar: falei com minha Papoula. E tudo o que falei a ela (não narrarei aqui) foi sincero. Encontramo-nos pessoalmente na data de meu nascimento. Uma noite que começara com um dia triste, terminaria do modo mais incrível que já vi: sob a luz amarelada da praça que contém o relógio da universidade, toquei as pétalas de suas faces com meus dedos e senti o sabor das pétalas de seus lábios com minha boca. O maior presente da minha vida. Naquele dia de aniversário, ganhei a mais linda das flores, a minha papoula!

E é a você, Papoula, que dedico esse pequeno texto. Ele não possui um terço da beleza que você merece. Ele pode conter frases esquisitas porque nesse momento estou nervoso (você sabe que sou atrapalhado). Ele é curto demais para expressar a imensidão do ato que aconteceu. Mas, por favor, aceite todos os erros de português que ele tem... não é um texto calcado em lógica, mas, sim, em amor. Amor... Como não amar quando vejo seus olhos-sementes-de-papoula, sinto sua pele, roubo dos seus lábios seu sabor e um pedaço de sua alma expirada pela barreira dos dentes? Amo. E, com poucas palavras, agora, lhe agradeço. Por tudo. Minha delicada Papoula.


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