“Tu”.
E desviou os olhos amargos
para o copo de café. Acabara de derramá-lo sobre o vidro. Reparou em sua imagem
presente nas diversas bolhas formadas na superfície do líquido. A mesma, mas de
tamanhos diversos. A escuridão do copo cheio logo cedeu lugar para a entrada de
luz, tornando o café avermelhado. “Pior que é verdade, quanto mais fundo se
vai, mais clara fica a coisa. Filosofia de quinta categoria...”. Terminou o
longo gole e apertou o vidro. A tepidez do recipiente era prazerosa. Corria
pelo pulso, adormecendo o braço. Quando somente restou a última gota, a gota
que nunca desliza pelo copo, abandonou-o sobre o mármore da pia. Conferiu se a
garrafa estava bem fechada. Passou o indicador direito sobre os lábios, como se
os riscasse. Remexeu a língua dentro da boca, tentando prolongar o sabor da
bebida.
“Tu”.
Semicerrou os olhos. Desviou
o foco do chão para a sua direita. Nada encontrou. Foi para o outro cômodo.
Porém, antes, um flash lhe chamou a atenção: relâmpago. A tarde estava
incrivelmente cinzenta. Não se inquietou, tomou o rumo do cômodo. Chegou.
Parou. Sentou. Nenhuma luz atravessava a janela. Na escuridão, ouviu o
silêncio, enquanto pensava. E estacou seu espírito. Por vagos minutos remexeu a
língua, procurando o resto do café. Sentia certa pressão nas vistas: embora
naquele quarto escuro nada pudesse lhe refletir, sabia que bastaria uma simples
junção das pálpebras para que algo lhe escorresse pelo rosto. Brincava de
controlar a lágrima teimosa quando o silêncio do momento foi quebrado por
batidas fracas na janela. “Tu”. Abriu o vidro e, por uma fração de tempo, o
relâmpago deve ter iluminado a vermelhidão de seus olhos. Chovia. Fotos eram
batidas a um intervalo cada vez menor. Sua fraqueza deu lugar a uma sensação de
possível conforto. Seu pé relava aquele instrumento de madeira que tantas vezes
lhe ouvira. Segurou-o. Levou para a sala e abriu a persiana da varanda: o céu
morria lá fora. Sentou-se no sofá. Empunhou a madeira e encostou o ouvido em
sua caixa acústica, como se abraçasse alguém muito querido. Afinou sua segunda
alma. Quando estava pronto, mirou as fotos, aquelas fotos que o Tempo fazia
questão de bater, como se sua sala se tornasse, de uma hora para outra, um
grande palco barulhento. Percorreu os dedos sobre as cordas. Minutos foram
perdidos na música que misturava o seu amargo espírito com a angústia do céu
chuvoso. A maciez do náilon... aquela maciez... há poucos dias, sentira algo
semelhante, mas, na ocasião, não falara para ela da semelhança entre sua pele e
aquele material. “Era o que me faltava, falar para ela sobre o náilon... Tu”. Tentou
afastar a lembrança com o Mi menor. Depois de tanta música, cansou-se de lutar
contra a chuva. Deitou-se no sofá, olhando a varanda. Deitou o instrumento
sobre si. Deitou-lhe os lábios, sentindo o cheiro e a textura da madeira. Ficou
assim, abraçado, esperando que o céu lhe rendesse uma última foto. O desejo
realizou-se e as nuvens desapareceram. “Tu”. Enfim, tudo terminara. Molhou a
boca com a língua, ainda sentia o sabor do café: então, com o indicador esquerdo,
rasgou a boca, deixando a saliva em sua pele; a mesma pele que tocara aquela
lembrança.