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Para ti

Amarra tuas asas, anjo. Chegou a hora de voar. O tempo te favorece: venta. Levanta. Erga teu corpo sobre a única coluna que restou nessa terra infértil. Tira as mãos dos tornozelos. Descruza as pernas. Erga teu corpo sobre a única coluna que restou no meu pensamento. Teus cabelos querem fugir antes de ti: amarra tuas asas, por favor. São cordas de náilon. Não irão te ferir. Afinei em uníssono. Mi. Levantarás vôo em mi bemol, alcançarás as nuvens em mi, chegarás perto do sol em sustenido. Então todos ouvirão teu corpo. Jura que olharás para mim? Vou te esperar. Mas, vamos, amarra tuas asas. Despe teu corpo, anjo: seres celestiais não usam seda. Erga teu corpo sobre a única coluna que restou no meu coração. Somente posso te observar. Foi-me negada a honra de tocar-te. Algum dia saberás que a culpa disto foi minha, unicamente minha? Sou castigado pelo meu silêncio. Deveria ter te dito há tanto tempo... que te amava tanto há tanto tempo. Passei dias com lágrimas destinadas a ti presas em meus olhos. Queria tanto ter sido corajoso para merecer estar ao teu lado. Queria tanto ter a certeza de que me amavas. Talvez isso me livrasse da dor que sinto, anjo. Mas amarra tuas asas. Eu mereço minha solidão. Estou cego, por Atena. Não me restou mais do que o vazio, o nada. O castigo Dela é fazer-me sentir tu ao meu lado e jamais olhar-te. Observo-te, anjo. Amarra tuas asas, vamos. Hoje não tenho mais o direito de chorar. Amo-te. E não posso chorar. Só aumentaria o sangramento da ferida. Como te desejei! Se eu pudesse, anjo, te daria cordas de ouro, para que tuas asas nunca precisassem de reparos. Como te desejei! Uma pena que os corações humanos não dêem sinal alto o bastante: tu ouvirias meus batimentos. Por que, anjo, por que sou tão fraco? Porque te amo tanto e sou tão covarde? Por que te ajudo a voar justamente na hora em que mais desejo arrancar-te as asas para sempre? Mas amarra tuas asas. Não valho teu sorriso. Tuas lágrimas. Teu amor. Teu corpo... Erga teu corpo sobre o capitel dórico desta coluna que restou na minha solidão. Amarra tuas asas, e, já que não posso te ver, beija-me com tua ausência. Sentirei o toque de tuas asas em meu rosto. Voa, anjo. Afinal, o tempo te favorece: venta.


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